O alagoano Fernando Nunes, 29 anos, já se acostumou a ouvir elogios a sua voz. As loas brotam a cada vez que declama as poesias que escreve, na mais de uma dezena de saraus literários por onde transita em Curitiba. É fato que os admiradores nunca lhe deixam de destacar os versos curtos, feitos para guardar de memória; densos e plácidos – verdadeira água para beber. Mas os fãs ocasionais se desmancham sobretudo diante da voz do moço, uma dessas dádivas dos deuses, permitam dizer. Cada uma de suas cordas vocais parece talhada para dizer versos. “É lindo o teu jeito de poeta.” O nordestino se acanha diante dos introvertidos sulistas que se aventuram pela tietagem, mesmo sem muito jeito para o ofício.
É fato. Não há vogal ou consoante que não soe clara na dicção de Nunes. Nenhuma concordância lhe escapa. Fala pausado, mas, para espanto, suas marcações precisas não causam ansiedade ou pressa. Antes, são oxigênio. Queremos mais. Damos-lhe corda. Como gosta de dizer versos, tem se esmerado para melhorar a técnica. “É o som do que eu escrevo no silêncio.” Lançou-se ao canto coral – onde se aninha junto aos baixos – e aprende a melhor maneira de projetar os sons. Que ninguém pense, contudo, que essa conjugação de talento e técnica soa falsa, como a dos mestres de cerimônia de formaturas, ou a dos tantos radialistas apaixonados pela própria voz, mais do que por quem os ouve.
Fernando nasceu e cresceu em Maceió, “uma cidade de corpo”, como costuma dizer. Quem o vê agora, uma pluma de 60 e poucos quilos, mal supõe que tenha sido um adolescente obeso, alvo de chacotas na escola e pouco dado às longas jornadas nas excitantes praias da capital alagoana. Pouco à vontade numa sunga selvagem, ficava no quarto de dormir, na companhia dos livros, de modo que os humores da balança ajudaram no nascimento do poeta. Mais jovem – e mais magro –, podia ter se atirado às ondas do “Francês”, mas era tarde demais: a literatura agarrou seu calcanhar. Seu primeiro grupo de diseuses de poesia se reunia, sim, na praia, mas à noite. Deliciava-se em declamar Jorge de Lima. Lembra de, então, se sentir satisfeito com a vida. Não ornava. Em se tratando de um poeta, uma contraindicação.
Os saraus populares são uma onda recente em Curitiba, mas rápido ganham ares de movimento cultural
Fernando Nunes se mudou para Curitiba em 2014. Um escritor precisa provar do exílio – foi assim com Octavio Paz e até com Marguerite Yourcenar, uma apátrida em sua própria terra. No lugar da luz estourada do litoral, a luz prateada da capital paranaense. Em vez de entrega irrestrita ao sol, infinitas tardes de chuva fina, lenta, enervante. E que gente contida. Poucos amigos. Mas fez o que fazem os estrangeiros – saiu da toca para sondar as gentes soltas pelos petit pavês. A essa altura, andava às turras com as letras. As maravilhas de sua voz eram um privilégio de poucos. Foi quando descobriu os saraus – e neles a sua turma. O poeta alagoano acordou ao se ver longe de casa. “Não sinto mais tanta falta do mar.”
Os saraus populares são uma onda recente em Curitiba, mas rápido ganham ares de movimento cultural. Melhor não perder o bonde. Os números são uma patada de elefante nos que apregoam a morte da poesia. Há ramificações e tendências – o bonde do Geraldo Magela, o do Candieira, o de coletivos como as Marianas. Em dois anos, apenas o núcleo gerido pelo ativista Getúlio Guerra, 45, fez 58 encontros, muitos deles concorridos. Acontecem quase sempre sábado à tarde, em lugares onde a literatura não costuma bater à porta. O encontro pode se dar numa associação de moradores, numa Rua da Cidadania, Passeio Público, num bar como o Tuba ou o Wonka, no campo de futebol, ocupação da Vila Pantanal, escola pública, num terreiro de umbanda do Boqueirão, a exemplo do marcado para a próxima semana. O modelo é o da Cooperifa – que há mais de uma década promove em São Paulo eventos com poetas de primeira viagem, talentos anônimos, adeptos de rimas ou de experimentações. Um MMA diferente, cujo cartaz com dia e hora fica na unidade de saúde. O candidato se inscreve, sobe ao palco improvisado, manda ver – nem sempre com microfone. Sem demagogia, tem lugar para todo mundo, inclusive para o erudito Fernando Nunes.
O barato dos saraus é que não intimidam os menos ilustrados. E costumam ser à prova do exibicionismo que assombra as altas rodas literárias. Por mais que se busque enquadrar esses encontros numa ordem burguesa, desformatam-se, um delicioso pouco caso, bilu-bilu, rendendo-se aos penduricalhos de que o povo gosta. Foram criados para a poesia, mas quando a turma do bairro fica sabendo, tem quem apareça para cantar, dançar o ventre, contar causos. Deveriam durar uma hora, bem ao paladar curitibano. Em tardes de recorde, ultrapassam a duração de Titanic e de ...E o vento levou, exigindo que alguém bata palmas para a turma ir s’embora.
Guardam surpresas que Getúlio jura que vai viver para contar, como a ocasião em que uma jovem cantora e compositora (Natália Ventura) hipnotizou o público do Sítio Cercado com sua “produção autoral”, expressão que causa urticária em empresários da noite. “Ela é uma Maria Gadú e acho que ninguém sabia”, alardeia Guerra. A propósito, desenvolve seu projeto de saraus junto à Fundação Cultural de Curitiba. Quanto ao seu impulso absurdo de levar literatura para a periferia, resume com um sonoro “sou morador do Xaxim há 44 anos”.
Quanto a Fernando – um dos mais de 40 poetas populares itinerantes que poderiam ser perfilados nessa página –, guarda um enigma. Contido, denso, por que diabos amanha atração por encontros em que a poesia pode não passar de um pretexto para se reunir? Ele tenta explicar. Jornalista de formação, busca construir sua obra em parceria com o público. Tem de acontecer ao vivo e em cores, feito teatro, onde rola uma gota de saliva no ar. Acaba de lançar seu segundo livro, download gratuito, para quem quiser. Chama-se Cais de Pedro, e antes de existir no formato digital roçou a língua dos leitores. Nos saraus.
No mais, Nunes é assim. Sua avó Josefa, vivíssima nas Alagoas, cantava Dalva de Oliveira, Cantava Luiz Gonzaga, e no meio do canto declamava a letra da música. O então guri aprendeu que o verso tinha de cair no gosto do ouvido. Além do mais, mesmo ao garimpar gente bamba da literatura, nunca se apartou do cordel, que outro paladar não provoca senão o apreço pelo cotidiano. Cais de Pedro traz um poeta às voltas com suas sombras, mas também um sujeito que se assemelha aos taxistas, policiais, ao eletricista Márcio Nunes, a aposentados e donas de casa que fazem versos sobre o pão nosso de cada dia. Não quer se apartar dessa refeição barata, da qual se serve a cada semana em que entra num ônibus e se manda para um ponto distante do mapa, atrás da poesia que é servida como churrasco ou feijoada – com generosidade.
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