A morte do padre José de Almeida Penalva, em 20 de outubro de 2002, trouxe dois problemas imediatos. Primeiro, como viver sem ele. Com as devidas licenças aos que pregam que ninguém é insubstituível, a máxima não se aplica ao teólogo e músico que por seis décadas marcou o mundo da cultura a partir de sua “base” – a Avenida Getúlio Vargas, 1.193, no Rebouças, em Curitiba. Era seu endereço. Ali tinha um quarto-estúdio, onde residia o segundo problema: assim que o corpo do sacerdote desceu a sete palmos do chão, alguém teria de abrir as gavetas e os armários nos quais se avolumavam pilhas de partituras de um dos mais geniais criadores brasileiros do século 20.
O “quarto do Penalva”, como era chamado entre seus confrades da Congregação dos Filhos do Imaculado Coração de Maria, guardava certa aura. Não era uma cela como qualquer outra. Com o tempo, foi preciso quebrar uma parede, para que se tornasse maior, um pecadilho contra o voto de pobreza justificado no renome do inquilino, um sujeito capaz de pôr de joelhos o spalla das melhores orquestras do planeta.
O local ficava na área reservada aos religiosos – uma espécie de claustro, sem acesso aos mortais. Mas do corredor dava para ouvir os dedilhados repetitivos de quem compõe. Lá dentro havia uma cama, um banheiro, tudo espartano, mas também a luxúria de um piano. Os que entregavam correspondência ao padre, ou o chamavam para que atendesse a um telefonema – e eram muitos –, viam pela fresta da porta folhas de partituras que pareciam flutuar, qual num desenho animado.
Por ironia, não foram os companheiros de comunidade – curiosos em saber o que se escondia naqueles metros quadrados – os convocados a desvendar os segredos do quarto. Como nas melhores histórias bíblicas, o privilégio coube a três mulheres – as pesquisadoras Hélina Baumel e Rúbia Stein, e à musicóloga Elisabeth Seraphim Prosser, com folga a maior autoridade na obra do teólogo. Beth é curadora de um festival que teima, ano após ano, para que o músico não seja reduzido à barbárie reservada à alta cultura.
Penalva era idolatrado pelos alunos da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. O mesmo não se pode dizer de parte do clero
Todas trabalharam como estivadoras, garimpeiras, arqueólogas ou o que mais lembre fazer uma escavação na mina de ouro. Confirmaram o que se supunha. A produção musical de Penalva ultrapassava 500 partituras. Havia ali, do mesmo modo, farta documentação sobre o Instituto Pró-Música e a respeito do Madrigal Vocale – para citar duas iniciativas às quais esteve ligado. Some-se anotações, pareceres e quetais do musicista, instrumentista e maestro sobre os caminhos da música litúrgica nos luminosos dias pós-Vaticano II, na década de 1960, quando a missa, e por tabela o canto, passa a ser em vernáculo, e não mais em latim. Na esteira dessa documentação, a cativante tentativa de Penalva em trazer elementos do folclore brasileiro à sacra.
O que não se esperava encontrar no acervo era um livro de poesia. Trazia inclusive uma sugestão de título – talvez um recado para quem o encontrasse: Bandido e anjo moram aqui. Impossível não achar graça. Penalva era idolatrado pelos alunos da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, onde lecionou, pelos cantores e por todo e qualquer cidadão vacinado contra a mediocridade. O mesmo não se pode dizer de parte do clero. À medida que a Teologia da Libertação angariava adeptos no país, mais o professor de Teologia Fundamental – ele mesmo – se via demonizado. À noite, quando regia, podia angariar 10 minutos de aplausos calorosos, em pé, com o público em febres a lhe gritar “bravo”. Pela manhã, entrava na sala de aula para digladiar com seus opositores, muitos inseridos em favelas e simpáticos às relações entre fé e marxismo. Engalfinhavam-se. E havia como troco a dificílima prova elaborada pelo padre, na qual, reza a lenda, a vingança caía pelas bordas. O anjo virava o bandido. “Bobão”, dizia ele, não raro pondo o pé na garganta dos seus antagonistas.
“O livro de poesias o humaniza”, resume o psicólogo social e teólogo padre Márcio Luiz Fernandes, também missionário do Coração do Maria, ex-aluno de Penalva e seu admirador confesso. Márcio sempre se perguntava por que diabos o mestre não falava de música sacra em sala de aula. Era sua dúvida metódica, chave para desvendar o mito. No mais, pertencia à cota dos que se negaram a subestimar o saber teológico de Penalva. O padre promovia, afinal, o que era próprio dos intelectuais – a troca de ideias, com a particularidade de que ia do camerístico ao orquestral. Quem o viu na regência de um debate não se furta de confirmar o clima de apoteose. O homem corpulento, de sobrancelhas arqueadas e vocabulário afiado, podia nos render em segundos. Mas também nos abraçar com sua inteligência. Ninguém falava de Teilhard de Chardin como ele. Nesses momentos, o céu.
O livro de poesias “do anjo bandido” passou em branco pelas catalogadoras, mas não pelo pio padre Márcio, que se debruçou sobre o escrito como se fosse um achado do Mar Morto. Entendeu que se tratava de um livro pronto para ser lançado. “São poemas íntimos”, diz. Percebeu que o material tinha sido datilografado, em dois anos, na década de 1970, no mesmo papel pardo, com recuos e espaçamentos que em muito lembram a poesia concreta dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Os originais parecem partituras. A grande influência, contudo, é Carlos Drummond de Andrade, onipresente na biblioteca fenomenal de Penalva.
A coletânea foi editada por Márcio há um ano, sem muito alarde, com o título Contrapontos – a teopoética de José Penalva (Paco Editorial, 164 páginas). É um achado. Não revela um poeta mais vanguardista do que o Penalva músico nem um poeta mais clássico, digamos, que o Penalva teólogo. Antes disso, mostra um homem que dialogava com as questões de seu tempo. No poema “Pecado”, brinca com o pessimismo sartreano – a quem cita nominalmente: “Sartre ensina / no fundo / todos agirmos por mal / a qualquer intenção de bem / não se pode mais dar crédito...”. Em “Na arquitetura niemeyeriana”, alia transcendência, vertigem e o concreto armado de Niemeyer. Transita por assuntos previsíveis para um presbítero – como a Quaresma –, mas igualmente pela altíssima filosofia, expressa nos versos de “Pesquisa” (“fé recebida / inata / aprendida: excluem-se ou se pode somar? / It’s a question / O que acha?”).
O encontro das poesias desconhecidas de José Penalva chama atenção para um outro Penalva – e esse de fato se perdeu. Trata-se do pregador. Quem tem uns chumaços de cabelos brancos por certo lembra dos congestionamentos na Getúlio Vargas às 19 horas de domingo. Penso que até quem não acreditava em Deus tinha prazer em ouvi-lo falar. Era, afinal, um maestro fazendo homilia. Regia as palavras. Padre Márcio bem que procurou, nos guardados do quarto, se havia rascunhos das célebres pregações. “Poucas. Há anotações. Ele preparava sua fala, mas é provável que as jogasse fora depois da missa”, conta. Uma pena. Mas há pena maior.
O material catalogado por Beth Prosser e outros é um patrimônio da maior envergadura, mantido à custa de um trabalho de formiguinha. O acervo de Penalva tem sido defendido com a bravura dos cruzados. Há pencas de partituras a transcrever. Peças de teologia a serem estudadas. Entre um pacote amarelado e outro, veio a surpresa dos poemas, escritos por um padre, na solidão de seu celibato. Podem não interessar à Capes/CNPq, mas não tem nada não, minha gente. Num de seus discursos que sobreviveram, Penalva chamava de “dedos de rosa” as pequenas redenções do cotidiano. Quando tudo vai de mal a pior, algo sempre emerge para perfumar a vida. O livro Contrapontos, ou “bandido e anjo moram aqui”, está aí para comprovar.
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