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Soube que a artista plástica Claire Kessner-Bradner traça "mapas afetivos" com os endereços que marcaram sua vida. A proposta é muito simples: ela cata o guia das ruas de sua cidade, São Francisco, na Ca­­li­­fórnia, e finca ali plaquinhas, nas quais explica, de próprio pu­­nho, o que lhe aconteceu nas alamedas x ou y. Nada de mais: as mar­­cações variam do lugar em que teve um beijo roubado à calçada onde levou um tombo de skate.

O efeito é instantâneo. Diante do mapa íntimo da artista outras pessoas se sentem estimuladas a fazer o mesmo. Pelo que se sabe, a brincadeira está gerando uma espécie de "movimento planetário em prol da cartografia sentimental", o que é bem-vindo nesse momento em que as metrópoles estão cada vez mais parecidas a Gotham City.

Acho difícil encontrar um morador da zona urbana que não tenha sofrido algum atentado à memória. Um belo dia a gente passa e o armazém do seu Edevar ou a casa da dona Nerinha não estão mais lá. Pior que isso – não tarda e acabamos esquecendo como era a dita rua da nossa infância, onde transitávamos de Conga e sem os dentes da frente.

Essa preocupação me assaltou pela primeira vez no dia exato em que minha rua ganhou uma mão de piche. Foi há um bom par de anos. E se agravou ao ler A terceira onda e O choque do futuro, ambos do jornalista Alvin Toffler. Ele tratava da arquitetura desmontável praticada nos Estados Unidos e da impossibilidade cada vez maior de alguém rever a escola ou uma praça da meninice. Tanto fascínio pelo novo tinha um preço – alertava.

Toffler é hoje um nome tão fora de moda quanto a touca bóbis. De futurista arrojado acabou relegado à categoria dos chatonildos avessos à alta tecnologia. Mas cá entre nós, ainda gosto do velho Alvin. Nele me escoro para sobreviver à fúria dos twitters que, em nome da velocidade, roubam nosso tempo.

Há quem julgue essa conversa uma ladainha de gagás. Ao provocá-la, costumo escutar que qualquer saudosismo não passa de tolice. Que "é relativo", pois o "mapa afetivo" de quem agora está na flor dos 15 anos vai incluir prédios fumês e pracinhas do Batel divididas ao meio. É a regra: uma hora, todo mundo fica na saudade.

O próprio Toffler entendeu que a nostalgia é um sentimento ralo demais para ditar as regras do mundo. Suspeito que por causa disso afirmou que as cidades só permanecem a pino num único ponto: nas nossas lembranças, esse vasto "museu imaginário", conforme expressão cunhada por André Malraux.

Tenho para mim que essa prosa toda ajudou a desenvolver o conceito de "cidade imaginária", um lugar empoeirado e impreciso, mas resistente à tirania das betoneiras e dos bate-estacas. Nas lembranças ainda é possível que as metrópoles sejam como ni­­nhos. Como fala a filósofa Olgária Mattos, "uma rua é um lugar em que uma guerra eclodiu e onde um amor acabou". É o que os mapas afetivos de Claire e sua turma estão nos forçando a lembrar.

Anos atrás, um membro da família Geronasso, do bairro Boa Vista, me contou da paixão proibida entre o agregado Jovino do Rosário – cujo nome batiza uma das vias rápidas da região – e Angelina, filha do patriarca Lu­­dovico. A história tinha tal colorido que até hoje não passo por ali sem imaginar a bela montada num cavalo branco, como me foi descrito, trocando olhares furtivos com o pobre do amado. Me­­recia uma placa no sinaleiro: "Aqui Jovino roubou um beijo". Seria inspirador, particularmente em dias de engarrafamento.

A memória, creio, pode ser um mecanismo mágico e subversivo. Fiz a experiência uma semana atrás: a gerente do banco me perguntou há quanto tempo eu morava na redondeza. Respondi que desde a época em que a Rua Ângelo Sampaio tinha paralelepípedos. Rimos feito bobos. Sem querer, dei àquela mulher a chave dos segredos: ela sabe o número da minha conta e que habito, de fato, a um palmo do asfalto.

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