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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Em setembro, minha mãe faz 70 anos. Observo que nos últimos tempos, sem querer, dona Judite tem composto uma "pensata" sobre a velhice. Suas reflexões são divertidíssimas e convivem numa boa com o apito da panela de pressão e com a voz do padre Reginaldo Manzotti no rádio da cozinha.Dia desses, ao flagrar na tevê o Stênio Garcia, remoçado por uma reluzente recapagem nos dentes, saiu-se com essa: "Daqui uns tempos vai ser uma vergonha ficar velho". Percebo seu olhar de "valha-me Deus", igualmente, ao ver na telinha a Regina Duarte, atriz que acompanha desde a época em que os televisores – da marca Colorado RQ – eram movidos a válvulas que explodiam.

Ela faz as contas – "se eu nasci em 1941 e a Regina em 1947...". Explico-lhe que as câmeras de alta definição, hum, são um santo remédio para os pés de galinha: ambas contêm colágeno. Rimos. E a conversa acaba sempre na Ingrid Bergman, para quem as rugas no rosto eram o mapa do que tinha vivido. Muito lindo. O almoço está servido.

Lembro que anos atrás, num velório, a mãe reencontrou um ex-vizinho que, pelos cálculos dela, já descansava a sete palmos. Diante da visão do além, cumprimentou-o com um elogio fúnebre: "Nossa.... O senhor continua velho". Nos rachamos até hoje com a gafe. Bem gostaria de mandá-la para o filósofo Gilles Lipovetsky, para que inclua em seus escritos sobre a hipermodernidade.

O culto à juventude se tornou, de fato, um saco. Reparem nas propagandas do Dia dos Pais. Em vez de homens com respeitáveis cabelos brancos, os modelos são rapagões nutridos com glutamina de baunilha. De minha parte, contudo, prefiro me deliciar com as cenas do "próximo capítulo" da história, das quais também já tenho o privilégio de desfrutar.

Meses atrás, ao tosar os cabelos que me restam, o cabeleireiro me confidenciou, julgando um agrado: "Deixei mais cheinho atrás para despistar a coroa de padre". Hã? Até então, eu gozava das benesses da ignorância: o espelho não manda notícias do cocuruto. Agora, peço "cheinho atrás", e que me arranque os pelos da orelha, sem dó.

Escutar mal é a pior parte da, digamos, "era da expansão abdominal". Dá rugas. Explico: a gente sempre esgrouvinha a cara ao perguntar "o quê?" repetidas vezes, com irritação. Além de inútil, o movimento da face usado para reativar a audição tende a imprimir sulcos do queixo à testa. O vaivém epidérmico não tem nenhum efeito comprovado no combate à papada. Nem nos deixa charmosos como o Herson Capri. O consolo é que a maior parte do que não escutamos não faz a menor diferença. Asseguro.

No mais, para que sofrer? Restam boas pedidas nesses anos incríveis nos quais os maduros conciliam o jurássico medo de vento encanado com a ilusão de que vão tirar férias em Marte. Uma das boas é se distrair lendo aquela frase debaixo dos letreiros: "Desde 1978". "Since 1986". Faz um bem danado à memória: em 1978 eu estava na oitava série e despistava a feiura das espinhas e penugens fingindo cantar "Stayin alive", dos Bee Gees. Em 1986, estava formado, lia Milan Kundera e cantarolava feito bobo, que ironia, "Volver a los 17...": "Como el musguito en la piedra, ay si, si, si....".

A bagagem do tempo também nos brinda com um estranho fenômeno. Podemos recordar muito bem como as pessoas eram em priscas eras. Eu compararia esse dispositivo a um arquivo de filmes com disparo instantâneo. A gente encontra um conhecido, pode até pensar "puxa, que estrago", mas logo percebe que o sorriso de guria sobreviveu à tez amarfanhada; que os modos de piá desafiam as olheiras profundas.

Graças a esse bônus da vida, olho para minha mãe septuagenária e ainda a vejo secando os longos cabelos na sacada de uma casa no Novo Mundo. E também me percebo em camadas. Dias atrás, uma amiga tomou minha RG "para ver como eu era..." Mas sou eu naquela foto. Ela debocha. OK. Mas no tempo daquele 3 x 4 o cabelo não parava no lugar, ó juba indomável! Quanto tempo perdido nos espelhos. Bendita calvície.

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