Quando menino, fui ao casamento de um tio em Umuarama. De tão bom, acho que não voltei para casa até agora. Na minha memória, a cidade cheira a café moído na hora, adoçado com açúcar cristal. Lembro meu espanto ao saber da quantidade de galinhas e porcos abatidos para o enlace, praticamente um atentado ao reino animal. E ainda me vejo andando de carroça pela terra vermelha, achando bem mais divertido que o tobogã do Atlético. "As Umuarama" eram só felicidade.
Da festa pouco me recordo. Até percebi as margaridinhas na grinalda de tia Ivete, mas os olhos não desgrudavam eram de Alzira, Martinho e Porfírio, os irmãos surdos da noiva. Foram os primeiros que vi na vida.
Feito astros da pantomima, faziam desenhos no ar para traduzir aos forasteiros verbos rurais como capinar e pelejar. Seus troncos se moviam como se fossem barqueiros do Volga, afrontando, com gestos expressos e dedos ligeiros, os tímidos de braços cruzados vindos da capital. O saldo é que despertavam nos outros ganas de experimentar o que diziam. Capinar e pelejar, segundo os surdos, devia ser tão bom quanto tomar banho de rio e montar a cavalo.
Só sei que eu, que nunca havia ido ao teatro, nem tinha idade para saraus, entendi o significado de mais dois verbos, como dançar e interpretar, implícitos naquelas libras caboclas. Muitos anos depois, quase morri de tédio ao ler O Corpo Fala, de Pierre Weil e Roland Tompakow. Alzira e os seus manos, uma vez, já tinham batido o texto para mim. Melhor que eles, só Denise Stoklos.
Semana passada, tive novo encontro marcado com os surdos. Foi na Paróquia São Francisco de Paula, onde o padre Wilson Czaia, 40 anos, deficiente auditivo, celebra para os que não ouvem e simpatizantes. Como dantes, ainda não voltei para casa. E se me perguntarem o que fazer em Curitiba num sábado à tarde, direi: "Vá à missa do Czaia".
Para quem não sabe, a comunidade dos deficientes é uma "igreja pessoal", termo canônico para denominar uma paróquia que funciona dentro de outra paróquia. Parece um consulado. Chama-se Nossa Senhora da Ternura, nome pelo qual ficou conhecido o ícone da Virgem de Vladimir ou Nossa Senhora do Doce Beijo, cultuada em terras russas. A escolha é óbvia. "As pessoas especiais precisam de carinho", diz o sacerdote, encenando o acalanto.
Já tenho uma teoria. Se não soubéssemos falar nada de nada feito os protagonistas de Enigma Kasper Hauser ou O mistério de Annie Sullivan sairíamos daquela cerimônia capacitados para nos comunicar com qualquer um. À revelia de a linguagem dos sinais ser diferente em cada idioma, com os gestos básicos dos surdos poderíamos bater um plá com zulus e dinamarqueses, com indonésios e kunas. A Ternura é o epicentro do globo.
Tem mais. Do "em nome do Pai" ao "vamos em paz..." é como se experimentássemos uma confusão dos sentidos. Sei não, mas os ouvidos ficam moucos diante do gestual desabrido dos fiéis surdos, a dizer com mãos elevadas e dedos tilintantes loas como "a Ele seja a glória, aleluia, amém".
Quem traduzia o canto em libras era Andréia Kohut. Seus gestos são de uma vestal, coreografando arcos e conchas com o pai de todos, o mata-piolho, fura-bolo, seu vizinho e o mindinho. Se é difícil imaginar, pense em como você rezaria um Pai-Nosso sem dizer palavra? Ou como faria para dizer "pão repartido"? Experimente.
É delicioso ver padre Wilson passar a mão sobre a barriga, pândego, com ares de saciado pelo trigo. Sorrisos arranham aos céus. Corpos piedosos fazem iê-iê-iê. Não falo libras. Mas saí de lá entendendo que assim como carpir e pelejar, celebrar é dos deuses. Era o que estava escrito nos rostos que eu vi.
Agradecimento ao psicólogo Aldemar Balbino da Costa, que atende seus pacientes em libras, pela tradução da entrevista com o padre.
José Carlos Fernandes é jornalista.
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