A curitibana Ingrid Müller Seraphim recebeu pelo menos três grandes benesses dos deuses. A primeira – o ouvido privilegiado, que aliado a longos serões ao piano lhe garantiu a posição de uma das musicistas mais importantes de sua geração. Entre os feitos que ostenta está ter sido aluna do maestro Heitor Villa-Lobos, pelo qual não passou como mais um rostinho bonito das elites ilustradas. Foi graças ao velho Villa que Ingrid percebeu a urgência de popularizar a papa-fina da arte, o que explica o destino que deu a seus tesouros.
Some-se a esse combo de “sortes” o pai de nossa heroína, Júlio Rodolfo Müller, um industrial luterano, de perfil liberal. Ainda que oriundo, digamos, do nicho mais purista da comunidade germânica do Paraná, cedo se mostrou disposto a despertar na filha algo mais que o sonho de um bom casamento. Em parceria com a mulher, Elsa Weimar – pintora, pianista e cantora que acordava os cinco filhos com as lieder de Schubert –, preparou-a para a vida pública, oportunidade que a guria não desperdiçou. “Desde pequena eu sabia o que faria de mim”, pontua.
Jovem adulta – e membro precoce do extraordinário corpo de professores da Escola de Música e Belas Artes –, Ingrid se casou com Paulo Seraphim, um engenheiro paulista formado nos espartilhos da tradição libanesa, pouco afeita a senhoras devotadas a outra atividade que não a família. A carreira de Ingrid poderia ter acabado na hora do “sim”. Ela supõe que a encerraria se o marido – pai de suas três filhas – o pedisse, a exemplo do que fizeram outros marmanjos. Longe disso: em vez de lhe sugerir mais atenção às panelas, por volta de 1967 Paulo lhe deu um cravo, azul celeste, belíssimo, objeto magistral que ela conserva em lugar de honra no apartamento onde mora, no Centro Cívico. O objeto virou seu passaporte para o posto de embaixatriz da música antiga no país, ao lado, entre outros, do maestro Roberto de Regina, com cuja militância artística se confunde.
Paulo Seraphim deu à companheira, também, todas as condições para que viajasse e vivesse as paixões estéticas que a carreira lhe reservava. Nunca mais deixou de ser citada como “Ingrid, a cravista”. Gosta tanto do ofício que costuma encenar uma extraordinária dança com os dedos a cada vez que os leigos lhe pedem a diferença entre tocar cravo e tocar piano. Funciona. Se a visse em ação, o cineasta João Moreira Salles a filmaria, como fez com seu mordomo Santiago, esse às voltas com castanholas.
Se a visse em ação, o cineasta João Moreira Salles a filmaria
A cravista Ingrid, como se sabe, está na origem da Camerata Antiqua, em 1974, e da Oficina de Música de Curitiba, em 1983, evento que deixou de ser realizado este ano em meio a um ruidoso impasse envolvendo transição política e panelaços nas redes sociais. A musicista não se furtou de comentar o cancelamento da 35.ª edição do encontro, mas o fez com a elegância habitual. Se o imbróglio se deve de fato à divisão de dinheiro entre cultura e saúde pública, pois bem, diz-se constrangida quando vê no noticiário cenas dos hospitais brasileiros, com pacientes agonizando nos corredores. Tivesse de escolher a quem dar a verba – a um concertista de renome ou a um postinho pedindo água –, ficaria com o segundo.
Por extensão, entende que o evento ficou grande e caro demais, um gigantismo que o coloca longe da proposta inicial – a de ser um encontro de professores com alunos, para estudar e se apresentar sem pompas, num clima de “oficina”. Preocupados em dar concertos, muitos convidados mal conseguiam se reunir com instrumentistas que chegavam aos milhares à capital paranaense. Logo na primeira edição foram 200 inscritos, número que desafiou escalas ao longo das temporadas. Ah – não é a palavra final, é a palavra de dona Ingrid, a quem interessar possa.
Em tempo, confessa achar difícil que o evento saia em meados do ano, como se chegou a anunciar. Ainda que no país as salas de concertos estejam às moscas – dando a impressão de que basta estalar os dedos para que instrumentistas caiam dos lustres e se habilitem a dar uma palhinha por aqui –, na prática, montar essa programação é um misto de heroísmo com insanidade. Ela que o diga.
No período em que esteve à frente da Oficina, a musicista exerceu um tipo de protagonismo que desafia a psiquiatria. Além de pensar repertórios, formar grupos e identificar bons profissionais nos quatro cantos do mundo, ocupava-se de arrumar meios para que esses bambas desembarcassem no Aeroporto Afonso Pena, tivessem onde dormir e o que comer. Captou? Exercia uma função diplomática, mas também contábil, com acréscimos que lhe pediam das tripas coração. Telefonava, escrevia e comparecia a embaixadas e consulados, oferecendo parcerias, passando a cestinha, agradecendo nas línguas pátrias. “De repente, alguém da França ou da Espanha me ligava, oferecendo, sei lá, quatro violinistas...”, conta, com empolgação, sobre o trabalho de formiguinha que lhe consumia os nervos – não raro em curto circuito. Tinha como incentivadores o marido e a filha Elisabeth Prosser, que é do ramo.
Primaveras depois, aposentada das funções de curadora, emocionou-se ao ler um depoimento do ex-prefeito e ex-governador Jaime Lerner sobre o que, na opinião dele, garantia a importância de uma iniciativa cultural – “seu desdobramento em tantas outras”. Levantou de novo os dedos mágicos, pensou e contou quantos frutos tinham dado a Camerata Antiqua e a Oficina de Música. Alegrou-se como uma menina do Colégio Progresso. Desde então, nem mesmo a zika que parece atingir orquestras e quetais aqui e ali a desanima. Nesse momento, profetiza, alguém está se sentando diante de um piano, com uma partitura à frente, começando uma história que vale uma vida.
A sua, em particular, é luminosa, qual uma cena da família Von Trapp em A Noviça Rebelde. A filha Beth tem se ocupado de registrar as performances da mãe, de modo a garantir um inventário mínimo da sua obra. Mas ainda urge que alguém se detenha sobre as memórias de Ingrid em torno da comunidade luterana, seu berço. Aos 12 anos, por exemplo, era aluna e parceira instrumental do mítico Karl Frank, pastor que ficou nada menos do que 45 anos à frente da Igreja de Cristo, a Igrejinha da Inácio Lustosa. Cresceu entre partituras, no embalo das haus music – apresentações domésticas, frequentadas por irmãos, primos e amigos alfabetizados em alemão. Preparar uma tarde com peças de Brahms, Bach e Haydn lhes era mais corriqueiro que comer pipocas no Passeio Público.
“Pense – não havia televisão. Era o nosso cotidiano”, resume, ao descrever minúcias de improvisos vespertinos nos chalés com enxaimel espalhados pela capital. Tão surpreendente quanto o expediente musical desses moradores do Alto São Francisco e adjacências, como se sabe, é o fato de que tais práticas, aleluia, extrapolaram os ambientes reservados aos seguidores de Lutero. A cidade saiu no lucro.
É fato que a criação da Escola de Belas Artes, em 1948, os ventos do pós-guerra, o centenário da emancipação política do Paraná, em 1953, contribuíram para tirar as classes médias da casca do ovo. Houve uma renascença curitibana na literatura, teatro e artes visuais, sobretudo. Mas não é coincidência que a música erudita ganhe impulso assim que jovens da comunidade alemã, a exemplo de Ingrid, vão estudar fora e voltam para casa dispostos a comandar pequenas revoluções.
Ela fez umas tantas. Nos anos 1960, diante do lindo cravo ganho de presente, passou a reunir jovens músicos, no seu quintal, para cultivar peças desconhecidas. Nada mais fazia do que reproduzir os hábitos da infância, mas agora com outras gentes e em outros espaços. Em meados da década de 1970, arrebatou o público que foi vê-la tocar na Igreja do Cabral, acompanhada de 16 idealistas feito ela, doidos por repertório barroco. Estava para nascer a Camerata Antiqua. Mais uma década depois, surge a Oficina de Música, para calibrar a rapaziada da Camerata. Foi como se a arte cultivada pela mãe Elsa, o pastor Karl e tantos outros ganhasse uma caixa de ressonância nas canaletas do expresso. Mais ou menos como lhe pediu Villa-Lobos, um dia. Moça educada que é, atendeu.
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