O cerro-azulense Rodrigo Bouard, 27 anos, mal se segura quando ouve o ronco de uma motocicleta. É sua paixão confessa. Desenha-as. Capta imagens na internet e coleciona. É capaz de falar sobre marcas e motores com requintes de catedrático. Descobriu cedo as razões de seu afeto – era um piá de 12 anos quando decidiu que seria mecânico. Largou a escola e se empregou em oficinas aqui e ali, disposto a aprender tudo, do apertar dos parafusos à natureza dos óleos. Como tinha cabeça boa, progrediu.
Aos 18, aquela idade em que muitos meninos em fios de barba ganham a chave de casa para chegar mais tarde, ele já estava lá, à frente dos outros. Sentia-se um homem feito – pagador de suas contas, dono de uma profissão, disputado lance a lance pelas gurias. Sabia mais sobre injetores, bobinas, ventoinhas e pistões que sobre futebol. Aos 20 – a bordo de uma Honda 150 – sofreu um acidente. Não lembra de nada. Pipocam versões e fatos sobre o calvário que se iniciou naquele 21 de setembro de 2008. Aos fatos.
Rodrigo ficou cinco dias em coma. Fátima e Valdecir, o Vardão, os pais, na sala de espera – disseram-lhes que esperassem o pior. Ao acordar, o acidentado arrancou as sondas e sentou na cama, aceso, como quem ia para a lida – caiu de nariz no chão. A notícia do que tinha ocorrido veio tal e qual se vê nos filmes: o médico de branco, contrito, começou a frase assim: “Você foi vítima de acidente grave e...” Em minutos soube da lesão medular, da tal de T8, da perda de movimento das pernas e se viu apresentado à cadeira de rodas.
Rodrigo Bouard raciocina como um mecânico de motocicletas. Vê seu corpo como uma máquina e acredita que pode fazê-lo funcionar de novo
Não fosse o suficiente ter de se ver com duas pernas inertes e um nariz sangrando, pegou uma infecção hospitalar e precisou amputar o colo dos fêmures. Eis o ponto. Nas penosas sessões de fisioterapia a que se submete, é o único cadeirante que não pode ficar em pé, sustentado pelos equipamentos. Acha um capricho do destino – tivesse quadril e adjacências em dia, poderia, sei lá, jogar basquete, praticar canoagem, sentir-se inteiro.
Não raro, diante do seu quadro muito particular, dão-lhe alta. “Não adianta nada”, costumam repetir os fisioterapeutas ao rapagão de 1,98 metro, pinta de galã da Malhação e sorriso de propaganda de dentifrício. Alegam que ele é destituído das duas pecinhas presas ao quadril, cuja colocação – repetem os especialistas – não lhe serviria de refresco. Ao contrário: caso as colocasse, como deseja, representariam um perigo a mais de infecção. Ele, que vive às turras com as malditas escaras, estremece e se cala.
Mas não concorda, que fique aqui registrado. Rodrigo Bouard raciocina como um mecânico de motocicletas. Vê seu corpo como uma máquina e acredita que pode fazê-lo funcionar de novo. Em sete anos de cadeira, a anatomia se tornou sua nova especialidade. Quer sentar o pé no pedal de partida. E, se é verdade que não existem próteses de colo de fêmur que sirvam para ele, não seja por isso, senhores: está desenvolvendo uma.
“Quero cursar Engenharia Biomédica”, avisa. Os desenhos da traquitana digna de Lee Majors estão sendo esboçados na mesa da cozinha do endereço onde mora, num dos altos de Cerro Azul, no Vale do Ribeira. Impressionam.
É enigmático vê-lo falar dos formigamentos abaixo da cintura, de tremeliques nos joelhos, da impressão de que algo belisca ali, na altura da T8. Os mesmos bambas que dizem “não adianta” também dizem “é assim mesmo”. De novo ele duvida, pois a dúvida metódica, à Descartes, é um requisito científico para que seu invento salte do papel paras as placas de titânio. No mais – assim como deu de sentir as pernas, deu de sentir esperança, mas não lhe peçam para dizer o que veio primeiro.
Rodrigo Bouard foi um dos personagens da matéria “Tragédias Expressas”, publicada em maio de 2010 pela Gazeta do Povo. À época, os números apontavam que os acidentes de motocicleta estavam formando uma geração de brasileiros com deficiência. Eram em geral jovens com baixa instrução, pobres, sem carteira assinada, fazedores de bicos como motoboys. Com sequelas graves e sem vínculos trabalhistas, viam-se, num estalar de dedos, entregues de bandeja às famílias, tão vulneráveis quanto eles. Só no Paraná, a conta chegava a 1,5 mil pessoas nessa situação a cada ano – Rodrigo era um dos..., só que não.
“Vocês precisam falar com o cara”, disparou um dos entrevistados, entregue a uma cama, referindo-se ao rapaz que – juntando os pedaços, assim como ele – ligava toda semana, distribuindo “deixa disso” e “siga em frente”. Marcamos entrevista na Associação Paranaense de Reabilitação (APR). À época, livre da depressão que o consumiu nos dois primeiros meses pós-trauma, esbanjava seu altíssimo grau de resiliência, um caso para a psicologia. “É lógico que tem dia em que acordo triste e penso putz. Mas qualquer um tem esses bodes, né mesmo? Tenho uma vida boa”, disse então e disse esta semana, em Cerro Azul, a 84 quilômetros de Curitiba e cinco anos depois da primeira vez em que falamos.
Em 2010, ficou a promessa de retorno, agora cumprida. Conto sexta que vem. Tudo bem?
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