“Aqui aprendi toda a minha sabedoria”, grita, debaixo de chicanas, o cadeirante Rodrigo Bouard, 27 anos, ao chegar à Gueno Motos – na Rua Vereador Constante Pinto, uma das vias que cortam a Avenida Erasto Gaertner. É recebido como se houvesse a festa da cumeeira. “Para tudo, minha gente. Só não fotografem dois machos se abraçando”, debocha o mecânico João Cézar Gueno, 51 anos – dono do estabelecimento, ex-patrão de Boaurd. É sujeito batuta. A foto foi feita – quase que debaixo de aplausos.
Rodrigo e Gueno se conheceram em fins de 2007, mas nenhum dos dois chega a um acordo sobre como foi. “Você bateu aqui na porta pedindo emprego, foi não?” A verdade é que por seis meses Rodrigo – então perto dos 20 anos – fez adaptação (tunagem) de motocicletas na famosa oficina do Bacacheri.
Chegou cheio de grau, conquistou fama de teimoso. Não era mais um aprendiz. Estava rodado. Tornos e rampas industriais eram para ele brincadeira de piá. Ainda adolescente, em Colombo, na RMC, decidiu que seria um expert em motos. Estagiou em vários barracões, até chegar ao bairro nobre. De todos os empregos que teve, esse é o do coração. Não passa três meses sem voltar, para um cheiro. Sente-se em casa, mas bate a danada da saudade. Os dedos roçam a prensa hidráulica, chora as furadeiras de bancada.
A motocicleta feriu Rodrigo de morte. Ele soma trincas de cirurgias
Gueno se desculpa pela bagunça, mas é inútil: trata-se de um baita cenário. Uma figura cultivada como Gerald Thomas faria o diabo ali – transformando em teatro aqueles cemitérios de pneus e de correias untadas de graxa, asas à espera de alguma serventia. Parece um gabinete de curiosidades do século 19. Na parede, dá gosto ver as fileiras de fendas prateadas, numeradas quais corpos do IML, debaixo de um aviso: “Não emprestamos ferramentas”. É recado para os vizinhos, que aparecem, cara de pau, atrás de um alicate. “Te trago em 5 minutos”, mentem, e blau.
Que se consolem com as fotos de folhinhas de borracharia. Não se sabe onde termina a moto e onde começam as moças desinibidas e suas peças que não vieram de fábrica, mas quem se importa com isso. Impressionam pelo desafio que representam – estão nos limites da física, da lógica e da libido. Só resta concluir que uma oficina mexe mais com a imaginação do que um parque de diversões. Fosse o Gueno, ofereceria uma maçã do amor a quem chega. E realejo na porta.
Há por ali quem ainda chame Rodrigo pelo apelido – “Locão”, sob medida para o guapo que chegou alto e magro como um poste, ensandecido por motocicletas envenenadas, dando bolas pros radares. “Ele queria aprender tudo. E aprendia. O cara é cabeça”, lembra o ex-patrão, não sem antes lamentar o acidente que levou o movimento das pernas do amigo. Aconteceu em 21 de setembro de 2008 – sete anos na próxima segunda-feira (silêncio).
Até que o telefone toca. Do outro lado da linha alguém conta do “alemão” – o da moto vermelha – atropelado por um ônibus. Não é o primeiro, não será o último, comentam, tendo o calibrador de pneus como testemunha. Gueno se curva diante da fatalidade e desabafa. Está sobre rodas desde os 14 anos. Foi poupado do pior, mas coleciona tragédias expressas dos outros. Gregas. É de ninguém dar partida de novo depois de ouvi-las. Desconecta-se. Limita-se a falar dos caprichos dessa amante inclemente, caprichosa e violenta – dona moto. “Não tem jeito. É amor que não cura. Nem quando a gente perde”, diz, perto de abrir um segredo.
Rodrigo Bouard é o caso. A motocicleta lhe feriu de morte. Soma trincas de cirurgias. A última, uma plástica para fechar ferida frankenstênica na perna. A próxima, na bexiga, para se livrar das torturas impostas pela sonda. Mas não se retorçam de dor só de pensar. Bouard já lambeu as feridas. Espera, inclusive, que as possantes lhe ajudem. Nos últimos anos, o cadeirante recorre às lições de mecânica do passado para inventar para si uma prótese de colo do fêmur. Projeta parafusos precisos o bastante para firmar o eixo da Terra. Desenha com bico de pena e punhos de renda. Pode não fazê-lo andar de novo, mas com certeza lhe fará viver melhor.
Quando fala de sua invenção – um dispositivo mágico capaz de tirar seus ossos da sonolência imposta pela coluna fraturada –, impossível não lembrar de O centauro no jardim, o livro maior de Moacyr Scliar. Em vez de homem cavalo, Rodrigo planeja se tornar um homem moto. Visitar a oficina do Gueno, suspeito, faz parte de sua estratégia renascentista: no meio daquelas paredes untadas de óleo, reforça a certeza de que todas aquelas peças de desmanche ali amontoadas são o barro da criação. Enquanto acredita, respira.
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