Foi assim. Numa das muitas escolas em que Cássia Morais Lima trabalhou, alguém propôs dar estrelinhas aos melhores alunos. Seria a panaceia educacional, o reinado de Butler. Ela não aplaudiu. Preferiu desconfiar do discurso desse método. Tempos depois, topou a parada. Distribuiria as condecorações a quem tinha direito. “Quero mil estrelinhas”, avisou. “São para o Tiago.”
Tiago era um daqueles meninos que fazia das tripas coração para se manter na escola. Cássia não o descreve. Conta apenas que certa vez o aluno pobre de Marré Desci lhe confidenciou que se alimentava de bananas. Bananas batidas com água, no liquidificador. Àquela altura da Pré-História das Casas Bahia, se ele tinha eletrodomésticos em casa, não devia estar tão mal. Mesmo assim, foi checar. Lá estavam as bananas – prontas para virar sopa –, e o garfo que o piá chamava de liquidificador. O resto fica por obra e graça da imaginação.
De Tiago em diante, Cássia nunca mais deixou de bater palmas no endereço dos alunos. É sua pedagogia do oprimido aplicada. Entre os seus pares na Secretaria Municipal de Educação, em Curitiba, ficou famosa pela disposição, civismo e por saber de cor o mapa dos subúrbios. Parolin? – perguntem a ela. O batismo de fumaça foi no Terra Santa – favela que quem viu nunca esqueceu. Mas ela se enfastia com tanto elogio. Que é isso companheiro? Cita essa e aquela, aquele e aquele outro colega de ofício que tanto quanto se dedicam à prática batizada de “busca ativa”.
A dinâmica da “busca ativa” não tem madureza. Pode ocorrer no início do ano letivo. Cena 1) Não satisfeitos com a lista dos que se matricularam, o educador põe boné na cabeça e sai em busca dos que ficaram de fora. Simples. Consta que é muito raro alguém voltar sem uma pilha de inscrições. Cena 2) A “busca” também acontece durante o ano, quando as crianças e pré-adolescentes acumulam tabuleiros de dama na lista de chamada. Antes que entrem para a estatística do abandono escolar, “alguém” se aproxima do portão e chama o pai e a mãe para um plá eivado de sinceridade. Eis a “buscadora” em ação.
Cássia não é o tipo professorinha de literatura cor-de-rosa; nem tampouco uma Rosa Luxemburgo disfarçada num avental branco
Cássia está em vias de se aposentar. Juntou a papelada duas vezes. Duas vezes recuou. A culpa é das buscas, que lhe impedem ir para a reserva. Ano passado, na saideira, decidiu dar uma mãozinha à brava equipe da Escola Municipal Itacelina Bittencourt, no Guaíra. O colégio atende a área mais depenada do velho Parolin. Havia 60 alunos com mais de 30 faltas. Cada porta que se abria, um Brasil diferente: criança criada por avó, por tia, por irmão ou sabe-se lá. “Consegui trazer 57 de volta”, contabiliza.
Este ano, convidada para trabalhar no Tatuquara – bairro com o qual tem uma relação barthesiana –, adiou o descanso mais uma vez. “Deu coceira.” Em tempos idos – quando aquilo tudo era um campo enfeitado com gigantescas torres de energia –, bateu perna adoidado no famoso Beco do Bassani, endereço para os fortes. Resgatou muita gente por lá. Poderia repetir a dose. Pois encontrou entusiastas para a sua cruzada e mais uma vez superou um recorde olímpico.
A “busca ativa” dessa vez identificou a assombrosa marca de 235 meninos e meninas que estavam fora da escola. Ou em processo de gazeta perpétua. Juntos, formaram 13 novas turmas nos bairros do Tatuquara e Caximba. Foi preciso erguer e derrubar paredes, fazer logísticas, pisar em calos, pedir favores. Para acomodar os “sem escola” do loteamento Rio Bonito, 40 mil moradores, apelou para o padre, que aproveitou a missa para dar os recados da professora. Fosse estrategista de guerra, tomava a Casa Branca.
Uma das áreas mais problemáticas – dentre as que estão debaixo do guarda-chuva de Cássia – se chama “29 de Outubro”. É uma ocupação, nasceu há seis anos e abriga algo como 1,3 mil famílias – 6 mil pessoas, quase todas expostas a uma tragédia sanitária. Fica onde a Caximba acaba, no desfecho da Rua Francisco Beraldi Paulini. A pipa no ar, permitam dizer, é triste. Está nas margens do Rio Barigui – mas avança. Parte das moradias desafia os humores do rio. São palafitas. O esgoto corre solto pelas ruas.
Tem quem lide bem com isso – como o figura que canta em inglês numa das ruas da comunidade. Divertido. Mas não apaga a imagem dos moradores que teimam em encher os vales de caliça – Sísifo mora longe. Algo naquela vila sempre parece prestes a desabar – e não é culpa do som alto que vem do Bar do Negão; nem das paredes grossas do Mercado Ki-Barato; nem da cantoria na Igreja Pentecostal Doutrina do Arrebatamento. Não é de espantar que, com tantos braços necessários para segurar a natureza, os pais tenham deixado a escola “para segunda, a perder de vista”.
Só que não tiveram refresco. Cássia procurou o líder comunitário Daniel, que num domingo à tarde – diante de mil pessoas – entregou o microfone à visitante. Ela usou a técnica do caramujo. Primeiro água morna para que saíssem da casca, depois água fervendo. Funcionou. A “29” tem todos os problemas da vida urbana, mas não tem criançada fora da escola. A não ser que nossa heroína se aposente – hipótese que deve gerar um bolão nos próximos meses – logo-logo há de ser vista pelas ruelas da ocupação. De novo vai ouvir a mesma pergunta: “A senhora é da Cohab?” – “Não, sou da escola”.
Antes que os anjos de cara suja lhe atirem pedras, um aviso: Cássia não é o tipo professorinha de literatura cor-de-rosa; nem tampouco uma Rosa Luxemburgo disfarçada num avental branco. Sua disposição em “correr atrás” é poética e inspiradora, mas não esperem vê-la fazendo campanha de agasalho, de cesta básica, ou em goelas numa seara política. Seus ideais fazem dela uma braçal: se o pai da criança sem escola se levanta às 9 e às 11 já está na “correria”, às 9 em ponto ela está lá, na porta, para falar o que o sujeito deve ouvir. Troca faíscas com adultos que não acreditam nos filhos, com diretores que desistiram dos alunos, com líderes que pularam essa parte. A pessoa é para o que nasce.
Em tempo. Cássia Morais Lima nasceu em Lins, São Paulo, e cresceu em meio aos cafezais do Norte do Paraná. Casou-se muito jovem. Em Curitiba, cursou Magistério no Instituto de Educação e Filosofia na PUC. Faz o gênero empírica – para entender o carrinheiro, puxou carrinho. Sua escolha pela escola foi reforçada no período em que se filiou ao Partido Comunista. Depois migrou para o PDT e confessa que ouvia três horas de discursos do Brizola, sem bocejar. Também merece estrelinhas.