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José Carlos Fernandes

Eles não querem choro nem vela

 | Foto: Ivonaldo Alexandre  Arte: Benett
(Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre Arte: Benett)

Temos para hoje seis personagens. Melhor, sete. Anote: um era boêmio e namorador. O outro virou andarilho. Tem aquele que trabalhou em firma e não deu sorte. O que ganhou um divórcio e três pontes de safena. O que da vida nada se lembra. O que já bateu as pernas.

Até pouco tempo, essas almas circulavam maltrapilhas pelas ruas da amargura. Somavam mais de 60 anos, sem família e sem tostão. O abrigo Recanto Tarumã lhes parecia a última parada antes do acerto de contas com Nosso Senhor. Mas eis que Claudimara Zanchetta lhes apareceu, mexendo com as articulações e, arrisca, com os planos divinos.

Claudimara é musicoterapeuta e gaúcha, o que fez toda a diferença. Criada nos vanerões, foi atender no asilo repleta de segundas intenções. Queria formar uma banda regional da terceira idade, somando ao suor de seu rosto a nobre missão de propagar a legítima arte dos pampas.

Seria por certo um conjuntinho simpático, tocando o melhor de Teixeirinha em fagueiras tardes dançantes. Não fosse lhe aparecer pela frente o pandeirista Jorge Xavier de Barros, rebatizado entre os coroas de Jorge Saci, numa alusão a sua energia à prova de reumatismo.

Pois Saci jurou à "professora de música" que tinha tocado para Carmen Miranda antes dela embarcar para os States, nos idos de 1939. Com esse currículo, mereceria ser o decano da banda. Claudimara nem se deu ao trabalho de fazer as contas – era impossível que um instrumentista da brasileira mais famosa do século tivesse vindo parar num abrigo mantido a duras penas. Mas logo viu que aquele não era o único talento a encerrar carreira no Tarumã.

A cada teste com moradores, mais "mãs e bás" soltava. Até um baterista de zona encontrou. Ao mostrar o que sabiam, seus candidatos pareciam sob o efeito Cocoon e se tornavam uns "velhos guris", expressão que acabou dando nome ao grupo. "E ela é uma velha guria", cutuca um, referindo-se à musicoterapeuta de 36 anos.

O clima é esse mesmo – politicamente incorreto. Que não se espere uma roda de chorões devotada a discursos edificantes sobre artroses. Os Velhos Guris são envelhecidos em carvalho, galantes e cara de pau, o que comprova o repertório pontuado pelo melhor da dor de cotovelo de Lupicínio Rodrigues e outros bambas. Não raro, em saraus ocasionais nos abrigos femininos da região, Cláudia tem de controlar o ânimo das senhorinhas remoçadas diante daqueles ilustres em chapéu coco, calça branca e sapato de malandro. E ainda cantam. Elas gamam.

"Eu faria tudo de novo", avisa o crooner Odamir Bartholomeu, Tuca do Pandeiro para os íntimos, 79 anos, voz curtida no rum. Com esse nome, varou noites e machucou corações desde a mocidade, bem a gosto. Há quase uma década, ao chegar ao Recanto, disse que só entraria para os Velhos Guris se o repertório fosse de samba. Venceu a oposição no cansaço, driblando Ivo Domingos Mendes, 62, adepto do sertanejo.

Em seus tempos de andarilho, Ivo imitava Tião Carreiro em troca de algumas doses. Cantou adoidado. Pelas suas contas, foi cinco vezes a pé a Aparecida do Norte e uma ao Rio Grande do Sul, acumulando milhagens de executivo. Carregou até cruz. Voz acre e bom de prosa, é o Rolando Boldrin dos Velhos Guris. "Quando o cabelo crescia o povo do bar pedia para eu cantar até Raul. Tudo bem, ué..."

Pois é – além de Odamir no vocal e Ivo no tamborim, Velhos Guris traz Urias Cordeiro, 64, no violão; José da Costa, 72, no ganzá; Flávio Nunes, idade desconhecida, no bongô. São sambistas discretos. Quanto ao Saci, o da Carmen Miranda, "deu baixa" em 2008, como se referem aos embarcados para o além. E dá-lhe música: "Quando eu morrer, não quero choro nem vela..."

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