Uma cobrança rendeu juros à curitibana Elvira Wolowska Kenski. Tudo se deu nos tempos de vovó criancinha, quando o Paraná ficava lá no fim do mundo. Elvira era ainda menina de tranças na hora em que seu pai – dono de uma marcenaria na Rua Comendador Araújo – mandou que ela fosse ao consultório de um protético, logo ali. Que lhe pagasse, sem choro.
Ao ver a mensageira loira como uma espiga de milho, filha de imigrantes por certo, o devedor lhe sugeriu que, enquanto esperava, desse uma “varrida na sala”. Não precisou repetir – saberia até dançar com a vassoura, se preciso fosse. Terminado o serviço, recebeu o convite para trabalhar no consultório, sem receber um tostão furado nos primeiros três meses, que ficasse claro.
Pois o desaforo lhe saiu melhor que a encomenda. Elvira aprendeu a esculpir próteses dentárias como ninguém, para alegria das bocas banguelas da então “Cidade Sorriso”. Foi assim que decidiu o que queria do futuro. Seria dentista, à revelia de nunca ter cruzado com uma na Rua do Fogo ou na Aquidaban. Pelo que tudo indica, foi uma das cinco primeiras a abraçar o ofício por aqui.
Ela nasceu em 1914, numa Curitiba de 70 mil habitantes e dois veículos apenas. Poucos se lembram
Na época em que isso se deu, as gurias faziam o Normal, quando muito. Casavam-se tão logo lhe apontassem os seios. No caso de Elvira havia uma agravante – além de ser mulher, vinha da comunidade polonesa, identificada com o isolamento das colônias, à margem do charleston, o ritmo de então. Sabia que teria de bater em ferro frio. Ademais, tinha um exemplo em casa: sua irmã mais velha, Wladislawa, lhe abrira caminho ao ingressar no curso de Medicina. Os grupos de gênero deviam estudar as irmãs Wolonska.
No primeiro dia de aula na então Universidade do Paraná, encontrou apenas uma outra aluna – Joana, de quem se tornou amiga até o outono de suas vidas. No mais, sentiu-se Elvira, a estranha, espiada por aquele bando de guris nervosos diante do balançar de uma saia. Não lhe davam confiança. Referiam-se em sussurros à “polaca”. “No pejorativo”, garante. Um artigo de jornal lido então lhe confirmou as piores impressões – o colunista bradava que “até a filha de operários poderia se tornar doutora”. Aquilo lhe dizia respeito.
A página só virou a favor de Elvira nas ditas aulas de prótese. Valeram o show. Os galalaus bem nascidos da Odonto tinham os boletins tingidos de sangue, não o das gengivas, mas o da caneta vermelha do professor. Não se davam bem com os melindres das espátulas e das químicas diabólicas que convertiam pós em dentes.
Quanto à polaca, nota 9,5. Elvira convidou a turma à sua casa, para umas aulas de reforço. Descobriram a Polônia. Impressionaram-se com a construção de madeira, a mesa farta, o colorido. Comeram os bolinhos de banana feitos pela mãe, dona Maria Skroch, com a volúpia dedicada aos quitutes da Cometa. “Vocês é que são felizes”, disse-lhe o filho de um banqueiro, ao filar o último bolinho do prato.
Naquela noite, Elvira ganhou amigos. Faz uma data. Hoje, mora muito bem, obrigada, no século ao qual a maioria de seus colegas não teve a sorte de chegar. Mesmo assim, sonha achá-los distraídos por aí, ressuscitados por algum capricho da máquina do tempo. “Na XV os encontramos, quem sabe?”, sugere à filha Rossana Matta, a cada vez que a seduz para que façam juntas um footing na Rua das Flores. Antes que me esqueça, Elvira tem 100 anos.
Ela nasceu em 1914, numa Curitiba de 70 mil habitantes e dois veículos apenas. Poucos se lembram. De acordo com o Censo 2010, a capital paranaense teria 140 pessoas com 100 anos ou mais. São os poucos contemporâneos da senhora Kenski, anônimos na casa do milhão – de gente e de automóvel. Pergunto se conhecia Hedwiges Mizerkowski, morta ano passado, aos 104 anos, retratada no documentário A polaca, de Fernando Severo. “A Iadja? Claro.” Nos últimos 50 anos se falavam mais era pelo telefone. Como tantos se foram, que venham os novos amigos.
“Me chame de você”, pede. Traja blusa fúcsia, calça comprida e crocs brancos, pelos quais se desculpou. As paredes do apartamento no Cristo Rei são rosa, cobertas de cerâmicas. “Sabe o Theodoro Makiolka, o da rua? Pois era irmão do meu avô”, diz, para depois emendar que foi uma barra ser polonês em Curitiba. Passou. Prefere é rir. E ri solto, como uma colônia inteira assistindo a uma peça de Alexander Fredro.
Pierogi completo. Fala com intimidade das desditas da Polônia em tempo de guerras. De Lamenha Lins e das colônias. De ter conhecido o advogado Miecislau Napoleão Kenski na Sociedade Tadeusz Kosciuszko. Tiveram cinco filhos. Em viagem à Polônia, já entrada em anos, queriam saber de onde vinha o talhe doce de sua pronúncia polonesa. Melhor que isso, suspira ao lembrar o dia em que ficou “frente a frente com Lech Walesa”.
Quando lhe perguntam sobre a vida longa, avisa ter resposta pronta. Empluma-se a velha senhora e declama um verso da poeta Helena Kolody, de quem foi vizinha: “Acha a vida linda? Gosta de agir? Faz planos? Sorri de seus enganos? Sabe sonhar ainda? É jovem apesar dos anos”. Só resta pedir que declame mais uma vez. Depois aceitar o sonho de goiaba que insiste em me oferecer.