Daqui uma semana, Gabriela Nicola, 23 anos, vai subir ao palco da Sociedade 13 de Maio, no Alto do São Francisco, para entregar a faixa de Miss Curitiba Trans a sua sucessora. Minha santa Hello Kity! Tem poucos dias para pensar no cabelo e na maquiagem. Precisa subir na balança. E ainda não fez o principal aviar o vestido da despedida. Procura algo alegre, que lhe valorize o talhe de colegial. Talvez se vista de azul. Há de esborrifar JAdore, da Dior.
Essa moça sempre sonhou participar de um concurso de beleza. Quando criança, não perdia um capítulo da novela mexicana A usurpadora, estrelada pela ex-miss Venezuela Gabriela Spanic. Tempos depois, foi dela que emprestou o nome e se rebatizou. Só lhe faltava a faixa e a coroa. Chegou a duvidar que viria.
Aos 15 anos, ocasião em que muitas meninas se tornam uma promessa de Isabeli Fontana, Gabriela tinha o rosto cheio de espinhas e uma pá de problemas: desconfiava que nenhum garoto ia gostar dela do jeito que era. Na escola, pudera, andava meio sem graça. No trabalho, que falta de sorte.
Pelas suas contas, até hoje foram mais ou menos dez tentativas de registro em carteira. Estagiou em lojas de departamentos e lanchonetes. No primeiro mês de experiência era um fuá, não tinha para ninguém. Os gerentes queriam contratá-la. As colegas de serviço lhe faziam confidências. Os fregueses diziam que só aceitavam ser atendidos por ela.
Mas na hora de assinar a papelada, nuvens negras: mal entregava os documentos e se via chamada de lado, para ouvir a mesma ladainha. "Olhe, não é preconceito, não, mas o nosso jurídico..." De tanto levar pancada, decidiu ser autônoma. Hoje faz performances em casas noturnas ao som de Shakira, Lady Gaga, Madonna e Britney Spears. Fatura R$ 300 por apresentação e paga suas contas.
Foi em meio a essas turbulências que em 2008 virou miss. Ganhou de prêmio um netbook, abraços emocionados da mãe, Jane, e um reinado com prazo de validade maior do que o das outras misses do planeta. Daria um dedo para contar tudo à outra Gabriela, a Spanic. Ano passado, o Transgrupo Marcela Prado não realizou o concurso, mantendo a eleita no posto por dois anos. Tornou-se Miss Curitiba Trans 2008, modelo 2009. A organizadora Carla Amaral não se arrepende do investimento. Banana para os gerentes de loja.
A moça representou bem a cidade em eventos fora do estado. Ficou oito meses no Rio de Janeiro, onde chegou a ser entrevistada por Monique Evans. Diante da curitibana, quase soltou um sonoro "men-ti-ra". As reações populares são parecidas. Eu mesmo conferi o espanto de uma senhora ao encontrar a vizinha coroada. Só faltou chamá-la de Adalgisa Colombo da Rua Ermelino de Leão.
A quem interessar possa, Gabriela gasta R$ 80 por semana com os tratos. As roupas de gala são alugadas. Não lê O pequeno príncipe: versículos bíblicos adornam as portas da quitinete. É tocante vê-la rezar o salmo 91 no silêncio do quarto lilás: "Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará".
Sempre digo que as histórias mais tristes que já escutei foram para uma reportagem com travestis e transexuais, numa viagem de trem a Paranaguá. Enquanto passava pelo Véu de Noiva e pela Garganta do Diabo, ouvi memórias sobre professores que mandavam engrossar a voz, sobre tomates atirados, sobre pais e mães que deram de nunca mais falar, de nunca mais ver.
Mas a Gabi do Bairro Alto acha que a vida melhorou. Foi com a mãe que saiu para comprar as primeiras roupas de guria. Em casa recebeu orientação sobre como se defender dos cafajestes. Tem emprego. E mesmo quando fala do educador que revelou na sala de aula haver um menino-menina na turma, o faz sem mágoa. "É difícil para todo mundo, né." Só as misses são felizes.
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