| Foto: Foto: Hedeson Silva / Arte: Felipe Lima

Hermes Eduardo Nichele calcula que tinha 3 anos de idade quando descobriu o transporte coletivo. Sua certidão de nascimento deveria ter sido lavrada ali, pois foi a bordo do ônibus que o menino recebeu um helmo alado, à moda do adivinhão Her­­mes, "o deus dos viajantes", seu santo protetor. Depois daque­­le dia, plunct-plact-zum, nunca mais se pareceu aos outros guris.

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O Olimpo de Hermes, o curitibano, fica um bocado longe, com sorte hora e meia de condução. Depois de vencer a Linha Verde, pega-se a Estrada Bruno de Almei­­da, no Tatuquara, e cruza-se o Cam­­po de Santana, debaixo de pastos, conjuntos populares e torres da Copel. Uma verdadeira viagem ao Centro da Terra: até reserva indígena tem – a Kakané-Porã.

Quando se está a poucos metros do Rio Iguaçu, já a ponto de plantar uma plaquinha de "fim do mundo", é ali que vive o rapaz. "Fica numa estradinha à direita, ao lado de uma plantação de feijão", como explica ele aos visitantes. O casarão dos Nichele – erguido nos idos de 40, quando o avô de Hermes, Sílvio, voltou da Campanha da Itália – logo se impõe na paisagem de pinheiro e barro de olaria. Curitiba acaba ali.

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Naquelas plagas, o bambino dos Nichele cresceu ouvindo histórias de Monte Castelo. "No Na­­tal de 1944, meu nonno almoçava quando uma bomba caiu ao lado dele...", repete, do rosário de causos de guerra que sabe de cor e salteado.

Graças ao pracinha Sílvio, Hermes se tornou o melhor aluno de História da redondeza. Mas foi graças à viagem de ônibus, ainda tão pequerrucho, que iniciou sua própria expedição, não pelos campos da Itália, mas pela cidade que, uma vez, por encanto, viu surgir da janela do busão entre os 20 quilômetros que se­­pa­­ram o sítio da família e a Praça Tiradentes.

No início, resumiu-se ao faz de conta de ser motorista. A mãe Adelaide ouvia da cozinha a voz de taquara imitando a gravação: "Próxima parada: Vila Pompeia." Aos 12, 13 anos, enfim, teve sua primeira vez. O pai Arlei lhe pôs uns trocados no bolso e lá se mandou, somente só, o garotinho até o ponto do Caximba-Olaria. Da Viação Redentor para o mundo.

Hoje, aos 17 anos, contabiliza passeios pelos 75 bairros da capital, os quais descreve como se fosse a granja dos fundos. Os vizinhos já descobriram a mina. Quando "vêm para a cidade", como se diz, recorrem ao sabichão para saber "como é que chega a tal lugar". Sabe, né, passou da Avenida Churchill, dista.

Aconteceu que de tanto pe­­rambular de alegre pelos terminais – chegou a passar por 12 num único dia – Hermes se tornou um busólogo castiço. Numa pasta, guarda mapas de todas as paragens, feitos à mão. Do guia das 8 mil ruas de Curitiba, encapado com plástico e tal, cuida como se fosse o Livro da Vida.

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Dia desses, de tanto observar o sufoco dos passageiros enlatados, projetou o Terminal do Tatuquara, com seus devidos alimentadores. Mandou a proposta à Urbs, mas resposta não veio. Deixe estar. Depois de amanhã, Hermes vai prestar vestibular para Arquitetura e Urbanismo na UFPR – o quinto mais concorrido da estação, com 18,57 candidatos por vaga. Uma vez com canudo, há de botar asas nos projetos de sua meninice.

Anote aí: Ligeirões do eixo Norte-Sul; binário da Nicola Pelanda; pista tripla na BR. E nenhum metrô à vista. O garoto é contra. Argumenta feito um douto seus porquês. A gente ouve, basbaque – sentado na grande mesa de colônia, tendo ao fundo, pendurados na parede, os bonés de ir para a roça. Em cima do fogão a lenha, a Virgem de Aparecida. Ônibus, engraçado, quase não se vê por ali. Mas Her­­mes sabe deles como se fossem gente. Coisa dos deuses.