| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre – Arte: Felipe Lima

O português da ótica estranhou quando a guria bonita se debruçou – de novo – sobre o balcão. Talvez não tivesse gostado dos óculos que tinha comprado um dia antes. Não era isso. Ela precisava de um favor. Agora. Pediu ao portuga que a ouvisse por uns instantes. Apresentou-se: Lídia Brandão, professora de canto, convidada a apresentar fados num especial da TV Educativa. Apavorada.

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Confira o canto do fado com Lídia Brandão

Havia poucos anos, deu de ouvir Amália Rodrigues. Nada de mais. Cantarolava umas e outras da diva enquanto cozinhava um brasileiríssimo feijão. "Era fado ao som da panela de pressão": "Não sei, não sabe ninguém, por que canto o fado, neste tom magoado..." Pois descobriram o segredo e a chamaram para cantar na televisão. Aceitou, no susto. "E agora, José?" Teria de se virar com o sotaque. "Pode me ouvir?"

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Pois o sujeito deixou estar a pródiga casmurrice lusitana e disse "sim". Levou-a para algum canto da loja e deixou que aquele límpido mezzo soprano desse existência a standards como Nem às paredes confesso. "Não queiras gostar de mim, sem que eu te peça..." Nem bem tinha terminado, o português se debulhou – um choro sentido naquele sábado injusto, ele aqui, ela ali, por encanto, a lhe fazer cruzar o Atlântico. "Menina, nasceste com o fado no sangue", resumiu-se a dizer. Ah, o pocket show na TV Educativa foi ótimo.

A história de Lídia com o fado é um clássico. Dulce Pontes, Ana Moura, Mariza, Cristina Branco, Eugênia, Teresa Salgueiro passaram por isso: sempre dizem que foram chamadas, simples assim. É como se a alma penada de Maria Severa, a primeira fadista, lhes soprasse aos ouvidos, convocando-as a se alistar no seleto coro das eleitas. Por isso usam xale – homenagem à Severa.

"Foi do nada", concorda. Ou quase. Lídia Brandão vem de gente portuguesa. Teve um avô Joaquim, é claro, e outro de nome Domingos – o boêmio "Galo Branco", artista de rádio. Eram "Brandões" de Arouca, cercanias do Porto, imigrados para o Morro de São Bento, em Santos (SP), onde fundaram uma sucursal da Terrinha. O local é conhecido pelas gritarias, flores nos quintais, pelas pronúncias tão exóticas que fazem do russo uma moleza. Tem Festas de Reis. E 365 receitas de bacalhau.

Tempos atrás, se lhe perguntassem, diria que o exílio santista não influenciou coisíssima... Hoje, não mais. Lídia e os irmãos gêmeos Tiago e Mateus foram "descobertos" na Igreja Batista. Mal tinham abandonado a chupeta, viraram atração nos cultos. Os pais se assustaram – filho músico é filho sem tostão furado. Não teve remédio. Hoje a família toda trabalha na escola Vox Dei, no Santa Cândida. Em paralelo, Lídia faz carreira como cantora de repertório. "Só faço música boa", encurta.

É um tipo. Amiúde, diz o que pensa cantarolando, o que faz do papo um espetáculo de câmara, grátis. Dá-lhe temperar as falas com trechos de jazz, Noel Rosa e chorinhos. Se está no palco, divide a cena com Beto Blues, nas cordas, e fala pouco. Juntos se apresentam em teatros que cabem na palma da mão, em spas, onde quer que haja gente interessada. Quando incluem o fado no roteiro, algo acontece. O público se cala, contrito. Ao final, é aplaudida em febres. A comida toda a esfriar nos pratos. Ais.

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No calor do relato, conto-lhe algo que ela não sabia – a última música que Carmen Miranda cantou, poucas horas antes de morrer, foi Rua do Capelão ("eu beijo as pedras do chão, que ele pisar no caminho..."). Talvez a Brazilian bombshell cultivasse a canção portuguesa em silêncio – nunca saberemos. Ela devolve, contando algo que eu nem supunha: mesmo sendo de família lusa, padeceu os infernos com as pronúncias. Escrevia num papel "tambéin", "sodád", trocava os "as" pelos "ãs". Tormenta. Há pouco tempo, cantou Lisboa antiga para o Carlos Baracho, do Restaurante Bela Lisboa. Ele a ensinou como dizer "matinais" (algo como "mtnâissss"). A palavra nasceu fresca como uma queijadinha. Tem sido assim.

Passo-lhe uma conversa – para que cante "ai Mouraria da velha Rua da Palma, onde um dia deixei presa minha alma". Oferece-me de troco trechos soberbos de Fado de cada um. E me dá um segredo: cantou fados uma tarde inteira para o avô Domingos, ele perto de morrer. Melancolia grau 10. Findo o relato triste, liga para a tia Regina – em Santos – e juntas cantam ao telefone Casa portuguesa. Cheirinho de alecrim – alegria grau 9. Fadistas são assim, estranhos como a vida.

Em tempo. Lídia se apresenta amanhã, às 20 horas, na Arca (Rua Flávio Dallegrave, 2.661). Vintão, em bom português.

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