Há pouco mais de um ano, o educador Fernando Gois – o “Fernando da Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros” – viveu uma experiência trágica nas ruas de São Paulo. Em suas andanças junto a mendicantes e dependentes de crack, encontrou um carrinheiro já pela hora fatal. O sujeito lhe pediu socorro. Instalou-se um deus-nos-acuda cercado de recusas por todos os lados. A Guarda Municipal alegou que não tinha competência para levar o papa ao pronto-socorro, que dirá... Outras instâncias deram desculpas tão esfarrapadas quanto. Restou a Fernando usar a carrocinha como ambulância, fazendo ele mesmo o caminho do hospital. O catador não resistiu. Morreu ali mesmo, junto dos papéis que juntava para vender.
Naquela noite, “mestre Gois”, como costumam chamá-lo, contou estrelas. Somava 58 anos e mais de três décadas de militância. Faltavam-lhe dedos nas mãos para contar o reconhecimento que recebeu de bambas dos direitos humanos, a exemplo do Nobel Adolfo Pérez Esquivel. Salvou centenas de adolescentes das drogas, do abandono e do abuso. Mas tinha ganhado um passaporte para o inferno: nenhum de seus muitos feitos serviam de consolo diante da visão daquele trabalhador morto dentro do carrinho.
Na mística cristã, chama-se de “aridez” o sentimento de ausência profunda. É algo próximo da depressão. Há quem nunca saia desse deserto, vendo virar fumaça a chama da fé e o impulso de fazer o bem. Fernando se safou do pior. Mas teve de fazer acordos tácitos de sobrevivência espiritual. Um deles reza que nunca mais vai dormir sem antes listar dez situações positivas presenciadas a cada dia. “Às vezes, não sei de onde tirá-las”, confessa o visionário que em 2015 se afastou das crianças e adolescentes com os quais trabalhava em Mandirituba, na Região Metropolitana de Curitiba, para morar numa maloca da Rua São Bento – no Centro de São Paulo. Sua intenção? Ver “de dentro” as políticas destinadas ao povo da rua, ver o povo da rua e ver a si mesmo.
Uma das primeiras medidas pós-trauma foi mudar de endereço. De inquilino voluntário das imediações da Praça da Sé passou a transeunte da “Avenida Brasil”, como costuma dizer. Desde o ano passado, reside em qualquer ponto do território nacional. Uma marquise lhe basta. Onde quer que desembarque, desenvolve ações em albergues, praças e ruas. Até agora, atingiu pouco mais de 20 cidades brasileiras, nas quais pernoitou ou se instalou por um tempo. Oferece ali sua “pedagogia dos sonhos”, uma oficina própria, feita para acordar nos que estão à margem o desejo de recomeçar.
Nenhum de seus muitos feitos serviam de consolo diante da visão daquele trabalhador morto dentro do carrinho
Em boa parte dos municípios, chega de carona em caminhões. Seus relatos estradeiros são impagáveis. Quando não está a bordo, está a pé, literalmente. Calcula que em 2016 andou por volta de 3 mil quilômetros, sempre com o auxílio de suas sandálias Havaianas. A marca devia patrocinar as causas de Gois. “Os chinelos duram em média dois meses. Mas tive um par que me serviu quase meio ano. Tem as que eu cato largadas pelo meio do caminho”, brinca. Não lhe causam bolhas, calos, dores nos joelhos – uma bênção.
Quanto mais difícil a tarefa, mais precisa andar, “para chegar humanizado”. Não poderia ir ao Rio de Janeiro de outro modo, por exemplo. Foi doido: Fernando se juntou a dois caminhantes de beira de estrada, os trecheiros. Um tinha três filhos no Comando Vermelho. Outro era pai de um matador de policiais. A casa de passagem onde dormiram estava dominada pelo tráfico. Em cada quarto do local ouviu relatos de pauladas e cacetadas dadas pelos capatazes dos chefões. Entre o beliche e o relento, naquela noite preferiu o segundo.
As histórias que o educador registrava anteriormente – sobre os moradores da Cracolândia – impressionavam pela crueza. Mas nada que se compare às de agora. Parecem saídas de um filme de Cláudio Assis, o diretor de Amarelo manga, Baixio das bestas e A febre do rato. Em Recife, por exemplo, Fernando foi acolhido num prostíbulo tão decadente que as mulheres nem mais atraíam clientes. Uma delas, na esperança de que o forasteiro guardasse alguns dobrões, chegou a lhe oferecer um programa. Logo se deu conta de que eram dois perdidos numa noite suja.
Noutra cidade, uma mulher foi lacônica: tinha 32 anos, cinco filhos, perdeu a guarda das crianças e estava contaminada pelo HIV. Iria se matar. Coube a Fernando demovê-la, apelando: “Disse que me atiraria com ela na frente do ônibus, caso não a convencesse a mudar de ideia”. Convenceu. Nem sempre tem final feliz. Na civilizada Belo Horizonte, pensou estar com dengue, depois da reação alérgica provocada por um colchão e um lençol ofensivos até para um cachorro sarnento. Foi ao Ministério Público.
Na hora do pega-pra-capar tem quem o deixe mofando na sala de espera. Mas, para surpresa, outros o convidam para entrar, entregando-se à prosa desse senhorzinho grisalho, que usa calça de brim coringa, chinelos de dedo presos com araminhos e camisetas alusivas ao MST, pastorais católicas ou dadas como brindes nos postos de gasolina. O que acontece nessas horas remete àquele imaginário do Cristo disfarçado – podemos ter acolhido ou despachado “o Cara”, um legítimo mico celestial.
De outra feita, ao se alojar num acampamento de viaduto, no Nordeste, Gois provou da ira de uma moradora do sereno. Em resposta ao “passa fora”, leu para a fera seis salmos – e nada. Quando já ia longe, conformado, foi abordado por outro morador daquele grupo, que pediu de joelhos que recitasse os mesmos salmos. Quem sabe se aquietava. Tinha funcionado com a mulher, assim que ele lhe deu as costas.
Na sua primeira fase de mendicância voluntária, em 2015, Fernando fazia oficinas com alcoólicos e anotava histórias que os moradores de rua lhe contavam – material para um futuro livro. Impressionava. Nesta, digamos, segunda fase, chama atenção sua sanha ecumênica. O ex-frade carmelita, que na década de 1980 deixou o claustro para morar na antiga favela da Vila Lindoia, vive agora às voltas com batistas, espíritas e quetais. Quanto mais fundo mergulha, mais encontra homens e mulheres com nervos de aço, espalhando profecias pelos sertões. Não deixa de ser um deles.
As viagens recentes lhe trouxeram, ainda, uma ciência – a de entender o que passa na cabeça dos trecheiros. É grupo obscuro, de número incerto e psique que desafia os escolados. Alguns trecheiros transitam ad infinitum, rumo a lugar nenhum. “É comum contarem que a vida de andarilho começou assim que perderam a mãe”, observa. Trata-se de gente solitária. Emprestar-lhes os ouvidos exige uma sacola de virtudes. Algumas delas nosso herói saca da mochila.
Uma das maiores curiosidades é o que Fernando carrega na bagagem. Pois leva uma troca de roupa; documentos e quatro brinquedos, que usa para ministrar oficinas. São eles – uma galinha de pano, um cachorro, um urubu e uma abelha de plástico. A galinha é para falar da acolhida; o cachorro, da escuta; o urubu, do cuidado com o outro; e a abelha, da atenção. Vez ou outra, transporta, para surpresa geral, livros de autoajuda escritos por Augusto Cury e obras espíritas. “É o que mais me pede o povo que encontro pela estrada.”
Em miúdos, cada trecheiro quer uma resposta para a estranha forma de vida que adotou. Não raro, veem em Gois um messias que apareceu para explicar por que diabos sofrem tantas conspirações do universo. É certo que esse santo manda bem na piedade. Mas é sobretudo um santo cívico, com topete para pôr o bloco na rua. Que assim permaneça.
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