Escutei uma piada engraçadinha assim: os dez mandamentos não eram dez, mas 12. O diagramador de Deus deve ter cortado dois itens para o layout das Tábuas da Lei ficar mais leve, digno de figurar no site newspagedesigner.org. Quem é de jornal sabe dos entreveros entre designers e jornalistas na hora de cortar o texto para caber na página. Um trauma.
A brincadeira gerou um banco de apostas sobre quais seriam os mandamentos cortados. Ganhou disparado "Cuidarás de vossa sogra até que morra". Quanto ao outro, não houve consenso. De minha parte, acho que o 12.º da lista era "Não procrastinarás". Posso ouvir a voz de Charlton Heston a insuperável encarnação hollywoodiana de Moisés ditando a regra da pontualidade para o povo do deserto. Assim fosse, não teriam vagado 40 anos pelo deserto, por supuesto.
Convenhamos que o verbo "procrastinar" não é de todo popular, ainda que, uma vez explicado, seja entendido de imediato. "Ah, eu também deixo para amanhã o que posso fazer hoje", dizem, sei lá, cinco a cada dez, comprovando a altíssima incidência da procrastinação. Merece um dedo de prosa sob as bênçãos de Barthes, Bachelard e Ariano Suassuna, para citar três grandes que enxergaram alguma virtude no vício de "deixar para depois". Vejamos.
A tecnologia digital, nascida com a promessa de que nos reservaria mais folga para contemplar as nuvens, acabou por sequestrar o nosso tempo. De modo que as horas gastas nos teclados devem ter aumentado, e muito, a prática da procrastinação, nos seus mais diversos graus. Ou é deixar algo para depois ou se consumir no cumprimento de tarefas que não chegam, despencam na caixa de email. Não é agradável se sentir a toda hora o alvo do atirador de facas.
Li certa vez uma reportagem que falava das centenas de enzimas que as emoções despejam em nosso organismo. Pé atrás. Desconfio dessa tendência de creditar à biologia a explicação dos comportamentos, o que só faz endinheirar a indústria farmacêutica. Mas vá lá o texto dizia que enzimas são como drogas. Logo, dão barato. Tirei minhas conclusões.
Deduzi que o ato de entregar atividades de afogadilho joga substâncias estranhas no nosso corpo, algo como xilocaína. Só pode ser essa a explicação. Por tabela, os não procrastinadores também devem lucrar sua enziminha particular, ao terminar algo com adianto. Vontade de pegá-los na esquina, mas não agora.
Tenho um amigo de adolescência hoje autoridade na área do Direito Canônico que podia assobiar na semana dos exames no colégio. Estudava antes, muito antes. Os outros se descabelavam. Eu achava a vida dele sem graça, tomando-o por uma pessoa destituída de nervos. Hoje quero entender o seu segredo, para copiar. Na comparação entre nós, entendi a ilusão do ato de procrastinar o "atrasador" compulsivo acredita que tarefas entregues a quente têm o bônus de um prazer que só dá as caras "na última hora".
Esses dias, uma colega me presenteou com o livro A arte da procrastinação, de John Perry, da Universidade de Stanford. A obra divertida vem acompanhada de um bloquinho de anotações com os dizeres: "Tarefas que eu vou deixar para amanhã". Pura provocação. O bloco está do lado da minha mesa intacto. Ainda sigo uma agenda manual na qual escrevo, sem sucesso, as tarefas que pretendo realizar hoje. Sim, o procrastinador sofre de autoengano e costuma ficar bom nisso.
O ensaio pode ser lido numa sentada. Embora escrito por um filósofo, oferece dicas para conviver com a procrastinação talvez não haja cura. Há itens como deixar o laptop na bateria para encurtar a folia na internet, essa fonte de procrastinação. Ou imaginar o mal causado a alguém que esperava um serviço seu. A meu ver, o mais importante é que o autor põe a nu, mas também limpa a barra dos procrastinadores, mostrando a nada mole vida que ergueram para si.
Perry os descreve como seres úteis afinal, estão divididos em pencas de tarefas. E diz que essas figuras que transitam entre o devaneio e o desespero só não cumprem o que está no topo da lista de prioridades porque são perfeccionistas. O procrastinador está imobilizado pelo feito espetacular que planejou para si o que outra coisa não é senão uma fantasia, da qual precisa se livrar. No temor de não realizá-la como devia, entrega-se às miudezas, deixando o que deseja de fato para amanhã. Ou para depois de amanhã, quem sabe.
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