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José Carlos Fernandes

Inferninhos e pedacinhos do céu

 | Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima)

A pesquisadora Rosângela Gomes dos Santos, 37 anos, não é dada a tirar folgas. Mal abasteceu a academia com uma dissertação sobre as mulheres que chefiam casas populares na periferia de Curitiba, saiu a campo de novo, com a disposição de uma noviça. E se mandou para bem longe – a cidade de Karslruhe, perto de Stuttgart, na Alemanha, onde integra um sofisticado programa de "ciência e tecnologia regional, com foco em planejamento espacial", lecionado de cabo a rabo na demoníaca língua de Goethe.

Penou no idioma, mas agora tira de letra. Senta-se todos os dias ao lado de estudiosos da Colômbia, Armênia e Tajiquistão – para citar três países com os quais faz fronteiras afetivas. Costuma ser chacinada – por perguntas sobre o Brasil, esse desajeitado. Sai-se bem em quase todas. Tiraria nota 5 em matéria de futebol. Nota 7 em carnaval – aprendeu a sambar, afinal, assistindo aos carnavais do Rio pela televisão. Nota 10 em habitação, assunto que acompanha desde que se conhece por gente. Não traduz a palavra favela, descreve-a, tábua a tábua.

Em 1976 – pós-Geada Negra –, os pais de Rosângela, Maria Inês e Luiz, deixaram a pacata Altamira do Paraná, no Centro-Oeste do estado, para desembarcar no "Inferninho", apelido de uma ocupação irregular instalada desde os anos 1950 nos baixios do bairro Santa Quitéria. Ao lado das favelas do Capanema e do Parolin – decanas da capital –, o local se tornou sinônimo de faroeste, alvo de 9 em cada 10 manchetes policiais, terra de um fora da lei conhecido como Wandão. O arrabalde era tão precário que Maria Inês – grávida de Rosângela – fez seu primeiro colchão com a palha recolhida numa ribeira do Rio Barigui. Depois, fez o que devia fazer uma sertaneja. Participou de mutirões para construir a casa dos parentes. Penou na mão das patroas. Consolou-se nas CEBs, as Comunidades Eclesiais de Base, nas quais entendeu que, apesar do nome, tinha de construir sua Terra Prometida ali mesmo, no Inferninho. Deu certo. Ainda mora na região – mas numa residência grande erguida aos pedaços, cujo jardim de rosas faz a gente toda parar.

Rosângela lembra bem da mãe e das tias erguendo lajes e tudo o mais. Achava bonito. Que o mundo acabava ali. Aos 14 anos, empregou-se como caixa no mercado do Inferninho, já então rebatizado como Vila Nossa Senhora da Paz. No meio do roteiro casa-escola-trabalho, deu de parar na biblioteca do Colégio Estadual Paula Gomes e encher a cabeça de minhocas. A essa altura, tinha o conga furado, não via serventia nas aulas de Inglês, mas teimou que faria faculdade.

Um dia, passou em Serviço Social, na PUCPR, e encontrou pela frente não os Wandões das quebradas, mas o filósofo Bortolo Valle. Foi antes e depois dele. Para quem não conhece, Bortolo é um pensador perfurocortante com retórica renascentista. Um gênio. Ninguém sai impune de seus colóquios. Muitos dariam um rim para ouvi-lo falar por 24 horas, sem intervalo para o xixi. Ponham Rosângela na lista. Basta dizer que, depois de uma aula dessas, pediu as contas no mercadinho e traçou um novo mapa para si.

Ainda moradora da comunidade, passava o expediente em bolsões de pobreza da cidade, a serviço da Cohab. É capaz de desenhar até os postes dessas terras de ninguém. O mítico líder Jairo Graminho da Bacia do Rio Formosa? Claro que conhece. A turma da Alemanha também – de ouvir falar. Para eles, o Brasil é carnaval, futebol, mas também Vila Canaã, Nina, Santa Rita ou Uberlândia. Um dos maiores arquitetos do mundo, Bernardo Secchi, repete sem parar que as favelas brasileiras não oferecem só problemas – são fontes de soluções criativas. Rosângela faz coro com ele.

Em tempo. A assistente social só se deu conta de que sua história dava um belo puxadinho na noite em que escreveu a dedicatória de sua dissertação de mestrado. Lembrou do que a mãe contava sobre o barraco de bambu onde vivia em Altamira do Paraná. Das parentas erguendo paredes nos brejos do Santa Quitéria. Das muitas favelas em que entrou como assistente social, ouvindo gurias pobres tagarelando sobre alvenarias e telhas como se fossem brilhantes da coroa da Cinderela. Emocionou-se de fato. A palavra casa é seu lar.

Hoje, mesmo quando anda de bicicleta na próspera Alemanha, não consegue deixar de pensar na sua pátria descalça, terra de inferninhos, mas também de pedacinhos do céu, conquistados por mulheres de nome Maria e Inês. A turma de lá mal consegue imaginar como é que pode. Mas adora ouvi-la tentando explicar. Eu também.

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