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Soube à miúda que a Rede Globo pretendia tirar do ar a Sessão da Tarde. Quase me atirei do meio-fio. Por uns minutos tentei imaginar como viver sem essa entidade do mundo televisivo. Impossível. O cancelamento equivaleria a vilipendiar sobre a Fernanda Montenegro, mandando-a para o Retiro dos Artistas. A encostar o Tarcísio Meira pelo INSS.

Não que a essa altura do campeonato me sobre tempo para esses folguedos vespertinos. Quem dera. O fato é que a notícia mexeu com a nostalgia daquelas horas fagueiras em que a gente podia fechar a cortina às 15 horas, agarrar-se a um pacote de bolachas, puxar o cobertor nas pernas e desperdiçar algumas horas. Não havia culpa nem nada; no máximo, as ralhas da mãe ao ver nosso filete de baba na almofada de panneau. Na telinha, a milionésima reprise de A cidadela dos Robinson: "Bertie, vá para o quarto e leia sete páginas da Bíblia..." Adorava essa parte.

Felizmente, a emissora não só desistiu desse atentado cultural como deu uma gemada para reforçar o horário, garantindo à piazada de hoje em dia o sacro direito à mais deliciosa das vadiagens. Digo mais: a Sessão da Tarde foi tão importante na formação lúdico-imagética de milhões de adolescentes que deveria ser declarada patrimônio imaterial da humanidade.

A propósito, às vezes penso que, em vez de as pessoas dizerem sua idade, deveriam declarar qual era o filme da Sessão da Tarde mais repetido de sua época. Simples como isso. "Meu nome é Fulano de Tal, e cresci vendo Quero ser grande. Sou o que sou graças ao Tom Hanks." Com essa medida sadia, evitaríamos contabilizar os anos inúteis em que estávamos à margem do processo civilizatório – melecando fraldas e metendo a mão no prato.

Insisto – mais produtivo do que se pautar pela certidão de nascimento é invocar os filmes que nos deram a consciência de existir. Sabe-se lá ao certo o que nos aconteceu até os 5 anos de idade. Fantasiamos. É o que garantem os estudiosos da memória. Já Charlie Sheen em Top Gang, discorde quem for capaz, é a mais pura realidade.

O temor de que a Sessão da Tarde fosse tirada do ar trouxe mais uma preocupação. Penetraríamos no buraco negro. Permitam-me... Certa vez, o semiólogo e escritor italiano Umberto Eco disse que não deveria haver mais de 17 anos entre um professor e um aluno – cálculo que se estende a outras relações humanas. Dezessete anos, para ele, presumo, seria o tempo de uma geração. O autor se justifica: com essa distância, duas pessoas não partilham mais das mesmas referências. Não viram os mesmos longas. Não leram os mesmos livros. Não comeram as mesmas bolachas. Sem pontos em comum, quando se falam encontram muitos abismos e poucas vizinhanças.

Ainda que cruel, Eco tem sua dose de razão. Já me peguei falando do impeachment do Collor, como se tivesse sido ontem, para pimpolhos que o estudaram nos livros de História. Pior. Vez ou outra recorro a alguma passagem dos standards da Sessão da Tarde, julgando ser um atalho para me fazer entender. Exemplo: nada me parecia mais familiar do que a cena em que Scarlett O’Hara volta à fazenda de Tara, jurando nunca mais passar fome. Essa imagem servia para falar de tudo – de filosofias telúricas ao preço dos hortifrutigranjeiros.

Pois eis que ...E o vento levou não passa mais na tevê. Com 3h58, é muito longo para os paladares agora apressados. Trabalhadores do Brasil, façam o teste e descobrirão que nossa gurizada nunca viu a Vivien Leigh mais gorda, melhor, mais magra: ela comia nabos (acho) enquanto a gente enchia a cara de waffles. O mundo acabou? Para Umberto Eco, não – quem quiser puxar conversa, que escolha outro filme. E eu que adorava replicar as teorias malucas do Paulo Francis sobre a frigidez da Scarlett. Imitar a criada Mammy? Só entre os coroas.

Mas ainda existe uma esperança. Há um filme que une gerações. Chama-se A lagoa azul. Graças à Brooke Shields a humanidade ainda tem algo que a una, dos 8 aos 80. Até o Manoel Carlos, 80 anos, fez referência ao longa num dos capítulos da novela das nove. Conexão instantânea. Proeza de quem? Da Sessão da Tarde, na qual o filminho permanece imbatível faz três saborosas décadas. Da próxima vez que passar, repita os rituais e fique em casa assistindo, mesmo que tenha passado dos 40 e esteja na hora de batente. Se seu chefe for humano, entenderá.

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