Arte: Felipe Lima| Foto: Foto: Hedeson Alves

Há quatro anos, calculo, tenho me lançado nu­­ma tarefa insana: anoto endereços de casas de madeira da Curitiba de antigamente. Parece TOC, chose de lóqui, caso de Pinel, mas é para uma futura reportagem. Depois dela publicada, me atirarei ao sofá, entregue à preguiça dos justos.

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Espero ansioso a hora em que usarei o expediente para bater palmas nas cercas dos outros. Atiçarei a ira dos cachorros, que me tomarão pela alma penada de um leiteiro do Xaxim. Uma mulher de lenço florido vai abrir a porta e me tratar com a desconfiança dedicada aos estranhos. Resistirei ao passa-fora usando da educação trazida de casa.

Depois de acenar o crachá amigo, direi a palavra que vale por todas: "Sou daqui". Ao cruzar o portãozinho que range, na ponta do pé pedra ante pedra, perguntarei quem ergueu tamanhas tábuas. Das mata-juntas. Do ano em que tudo se deu. Tratarei in memoriam dos Nicolaus e Zibniews que jazem no Santa Cândida. Falarei do Pilarzinho, Barreirinha e Abranches como repúblicas es­­quecidas, pois de fato são.

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Se a prosa desandar, polido farei um elogio ao assoalho com cera nova – "É de pinheiro?" –; declararei devoção à Virgem negra de Czestochowa. Se ainda assim me sentir um estranho na colônia, hei de falar da minha tia Inês – nascida em Rio Claro do Sul, perto de Mallet. "Era Wypych de solteira." Batata: ganharei o direito de sentar-me à sala.

A mais nova casa da minha lista fica na Mal. Hermes, 1.499, Ahú. Tem lambrequins, o que a credencia para meu roteiro. Pró­­ximo tem uma outra, em riba da Sociedade Urca, toda azul, com jardim na frente. Ao vê-la me senti com 8 anos de idade, calça curta, rumo ao Passeio Público. Vai ver que é disso que sofro.

No fundo, quero mesmo é pisar nas varandas vermelhas de pó xadrez, perguntar onde fica o poço e "pé-de-quê" é aquela árvore. Tenho ganas de bisbilhotar retratos em preto e branco e de ouvir sempre a mesma frase. "Essa foto é da minha baba. Ela veio da Polônia...". Eis o início do mundo.

Teremos assuntos para uma tarde, seguido de café fresco e biscoitinho enfeitado. Passada uma hora, marcaremos um outro dia para terminar a prosa, provavelmente nunca mais. "Quer levar um vidro de compota?" Ao dizer adeus, levarei um beijo e serei da casa – da casa que não vou encontrar na próxima viagem.

Não sei ao certo quando essa pira começou. Talvez na Rua Nicolau Serrato Sobrinho, no Novo Mundo onde nasci. Em empreitadas de fim de semana, o pai substituía a madeira por alvenaria. Pôs terraço e janela de ferro. Já me flagrei, quieto animal da esquina, vendo a casa que um dia foi minha.

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Sei de gente mais doida do que eu. A artista plástica Didonet Thomas faz tombamentos poéticos de moradias em via de demolição. Registrou o desmanche da casa de Erbo Stenzel, de Rômulo de Deus e da família Castro – a Casa da Estrela, na Rua Zamenhof. De Didonet, ouvi com inveja que milionários americanos sacam montanhas de dólares para colecionar edificações antigas.

Do arquiteto Key Imaguire Júnior aprendi que não são todas iguais: aquela é colonial portuguesa, a outra polonesa, essa de tradição alemã. Do designer Re­­nato Bertão vi o site em que abrigava memórias da madeira. Com Bachelard passei a vê-las como ninho. De Roberto Gomes li o li­­vro Todas as casas, no qual faz o que todo mundo deveria fazer: escrever sobre os tetos onde habitou.

Há uma década, a prefeitura criou a Vila de Madeira do Atuba. Era para ser um museu aberto de casinhas muito engraçadas. Mas só há uma por lá. Pergunto o bicho que deu. Silêncio nos pi­­nheirais. Vejo que as casas do Umbará tombam uma a uma. A pequena da Rua Pará, a qual pa­­querei, deu lugar a um neoclássico medonho.

Dizem que há 81 mil casas de tábua na capital. Bonitas como aquelas, não mais de 15 mil. Desconfio de quem as derruba sem ao menos sofrer um pouquinho. Fosse minha uma delas, olharia vesgo a quem chega. A depender do que pedisse, soltaria os cachorros. Quem bate palmas, que ao menos mendigue uma história. Os mais velhos exigem respeito.

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