| Foto: Antonio More – Arte: Felipe Lima

A historiadora paranaense Laysa Carolina Machado, 42 anos, rasgou muito verbo nas últimas semanas. Latim não lhe faltou. Começou com o alarido em torno da arte-educadora Júlia Dutra, a primeira transexual a chegar à direção de uma escola no Rio de Janeiro. Depois veio o Oscar dado a Jared Leto no papel do transexual soropositivo em Clube de compras Dallas. Por fim, a cena roubada pelo biquíni selvagem da travesti Patrícia Araújo, no desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel.

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Não se furtou de nenhum desses debates, para surpresa dos que não entendem por que ela não se cala. Laysa guerreou todas as guerras, bem podia se atirar à rede, ir ao salão, fazer hora no supermercado. Está casada. É concursada. Tem uma carreira paralela, como atriz. Os novos documentos estão em dia. E fez história.

Basta dizer que, antes de Júlia Dutra sonhar ser mandachuva, ela já estava lá, fazendo parte da equipe de diretores de uma escola – o Colégio Estadual Chico Mendes, em São José dos Pinhais. É pioneira no gênero, no cargo desde 2009, com o acréscimo de que foi eleita pela comunidade, uma proeza.

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Mas não lhe peçam que se contente em ser uma mulher como tantas – ela há de lançar chispas saídas de seus olhos rasgados de rainha cafuza. Mandaria palavrão. Com sorte do interlocutor, respira fundo e responde com sua belíssima voz grave que é uma mulher trans. Que seu nome – Laysa – não deixa dúvidas. Que não vai se trair. Um dia, sai no jornal O Globo. Noutro, vai ao programa do Danilo Gentili, recebe documentaristas catarinenses, entrega-se a um projeto premiado pelo Instituto Vladimir Herzog. Se alguém na redondeza não sabia que Laysa é trans, fica sabendo. E seja o que Deus quiser.

Bem-me-quer, mal-me-quer, difícil não se perguntar como chegou viva até aqui. Nem eu nem você suportaríamos. Acompanhe o resumo. Laysa nasceu de pai negro e mãe índia, pobrezinhos da Colônia Vitória, em Entre Rios, rica comunidade alemã próxima a Guarapuava, no Centro-Sul do Paraná. Morava na ocupação Vila dos Brasileiros, cujo PIB não se parece ao da Baviera. Tirava comida do lixo. Amargava a tristeza de ser guri e saber-se guria, com o acréscimo de ter de aturar um coro de sádicos à sua orelha, gritando sabe-se bem o quê.

Seu redentor – um padre estrangeiro em missão. Deu-lhe um jardim para cuidar, uns trocados. Livros e revistas. Estudos. Etiqueta à mesa. Música erudita. Viagem à Europa. Tinha-a como um filho, mas custou aceitar que o curumim do Mundus Novus se via como Laysa. Choraram juntos o que não podia ser mudado. Um dia lhe disse: "Ganhei uma filha", e foram felizes para quase sempre – ele de volta a seu país, onde morreu. Ela nascendo de novo, aos poucos, sem coro de passarinhos a lhe saudar, paciência.

Ouvindo-a, fica a impressão de que foi ao procurar frutas boas no lixão, quando criança, que entendeu como funcionava o manual de sobrevivência na selva. É na base do ônus e do bônus – quem obedece fica vivo, pode estudar, pode ter emprego. Assim o fez, estrategista. Cumpriu todas as falas do script que lhe reservaram. Namorou. Cursou faculdade. Aprendeu inglês. Disfarçou-se. Garantiu-se – para, no último dia de 1999, desacatar. Comprou o primeiro vestido e inaugurou seu novo milênio. Foi a um baile. Foi o bug. Uma semana depois, estava demitida.

Difícil não ver o filme em que Laysa menino é ajudada por um padre, em que a Laysa menina leciona História, Geografia e Inglês em escolas da Colônia Marcelino e no Colégio Aníbal Khury, no Uberaba. O avental comprido escondia a obra dos hormônios. O corte no pomo, "tireoide", dizia. Sabe-se que os alunos batiam os pés em protesto a cada partida. Ônus e bônus – tinha de ser a melhor, do contrário, guilhotina.

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Em 2007, ao chegar ao Colégio Chico Mendes, seu posto por direito, impôs-se com o nome com o qual se batizou. Não lhe deram refresco. "Tem quem me ache um ET." Discordo. Laysa fala bem pra caramba – deve fazer bonito em sala. Tem inteligência viva e aquele dom de colocar a pergunta exata, talento de poucos. Em certas horas, é como se não tivesse nervos. Faz o tipo cerebral. Em outras, lembra Elza Soares – "cantando para não enlouquecer". Seu lema, aliás, vale uma rodada bem gelada: "Quem, como eu, não tinha mais nada a perder sempre tem tudo a ganhar". E aquele abraço pro Jared Leto.

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