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José Carlos Fernandes

Lula mora na Vila Esperança

 | Foto: Ivonaldo Alexandre – Arte: Gilberto
(Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre – Arte: Gilberto)

Anos atrás, durante um jogo de sinuca, o líder comunitário Odair Soares Rodrigues foi abordado por uma mulher à beira de um treco. Tinha ido à unidade de saúde e não havia médico. Pronto, Odair sacou o celular, ligou para a prefeitura, desceu o verbo, debaixo do olhar basbaque de seu companheiro de partida. "Conta outra..." O vivente duvidou que o telefonema era mesmo para a prefeitura. E, se fosse, ninguém viria correndo àqueles confins do Atuba.

"Duvida?" A questão virou um duelo entre amigos. Foram ao "postinho" em "marcha atlética" e deram de cara com os médicos faltosos, vestindo os jalecos, ares de "sinto muito", para alegria de Odair – melhor, "Lula", apelido pelo qual é conhecido há 30 anos. Semelhanças não faltam. A voz rasgada. A barba em desalinho. A atração pelo palanque, no qual profere discursos de improviso. Só falta o dedo amputado – ou quase. Por pouco, um tumor não levou o mindinho do Lula, mas o deixou torto como um alforje.

Odair, o "Lula", nunca planejou ser líder comunitário. Nascido nas roças de Rolândia, fazia o tipo que pedia doce na venda quase pedindo desculpas. Como muitos, um dia fez as malas para São Paulo, onde passou a viver da marcenaria. Fixou-se em Buturussu, uma periferia como tantas – mal acabada e erguida em cima de um barril de pólvora. O movimento sem-teto andava às turras com as autoridades. Não demorou para que Odair, do alto de seus 26 anos, descobrisse o piquete, a queima de pneus e a delícia de falar ao microfone. Alguém logo gritou: "Esse cara é o novo Lula". Nasceu de novo.

De volta ao Paraná, armou acampamento na Vila Esperança. A ocupação de mais ou menos 8 mil moradores vivia ao sabor das enchentes do Rio Atuba. O que as águas não levavam costumava ser engolido pela erosão – pródiga por ali. Como a vila se confunde com um subúrbio de Colombo, era deixada de lado pelo poder público. Para piorar, não havia médicos na área, uma tragédia, a contar pela quantidade de doenças trazidas pelas cheias.

Virou seu chiclé de bola. Políticos e secretários fugiam dele – "ih, lá vem o cara do posto de saúde..." Até que Lula venceu na teimosia. O líder tem fama de negociador. Mas faz bom uso de tamancas e ferraduras, se preciso for. "Eu peço exigindo", resume, sobre o estilo que deixa pianinho os representantes das altas cúpulas, incluindo as primeiras-damas e os próprios correligionários: eles se desmancham quando o veem passar num Fiat que funciona movido a milagre.

Lula está no posto máximo da Vila Esperança há nada menos que 12 anos. Seu mandato acaba no início de 2015. Soma 56 primaveras e tem três sucessores em vista. Nenhum é mulher. "Não tenho uma Dilma", avisa. Mas tem uma Dina. Tia Dina, para ser mais preciso. Explico. A vila onde Odair, o Lula, é rei, faz divisa com uma antiga Cohab, a "Nova Esperança". Os nomes são parecidos, confundem. Mas a vila vizinha é mais bem-sucedida. Fica num platô, é arborizada, tem ligação fácil com a Estrada da Ribeira e segue o modelo da Vila Nossa Senhora da Luz, que em 1966 inventou a casinha popular com cara de casinha de colônia. Um mimo.

Há 40 anos quem manda ali é a Dina, espécie de Elizabeth II. Ela e Lula são próximos, mas vivem em planetas diferentes. Já se estranharam – em especial quando o pessoal da "Esperança de cima" disse que queria colocar muro alto para se separar da "Esperança de baixo". Deu em nada. O bom senso reinou, até porque as duas comunidades têm em comum algo mais do que o nome: desfrutam da mesma unidade de saúde. E uma unidade responsável por colocá-las no noticiário, não o policial.

Foi notável o trabalho que o posto fez com as "mães menininhas", visto que ali esteve a maior concentração de adolescentes grávidas da capital. Peçam para o Lula falar a respeito. A voz fica embargada. "Não suporto injustiça e sofrimento", repete, para desespero dos clientes que encomendam seus préstimos de marceneiro. A luta pelos direitos humanos costuma atrasar as entregas.

Nos últimos tempos, aliás, anda às voltas com 50 famílias que ocuparam uma outra margem do Atuba. A pequena comunidade ameaçada de despejo já tem nome – "Divino". Fica um pouco além de onde acabam as Esperanças. E Lula está sempre lá.

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