Proponho uma traquinagem: alugar uma frota de vans, lotá-las de arquitetos e donos de bares, empresários emergentes e herdeiros com cifras nos olhos, gestores públicos e novos ricos, e levá-los para um passeio até o bairro Santa Quitéria. Antes, claro, um coffee break servido pelas melhores panificadoras da "BelaCap" como diria o Dino Ameida.
Desembarcaríamos na Rua Bocaiúva, 351, onde funciona há quase 50 anos o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Nice Braga. Para quê? Mostrar que uma casa mais antiga do que a vovó criancinha pode servir aos anos 2000. Não é preciso derrubá-la covardemente um pouco a cada dia. Incendiá-la, "pois acidentes acontecem". Ou contratar o melhor escritório da paróquia para garantir na Justiça o alvará de demolição.
O "maternal" Nice Braga, como ainda é chamado, foi inaugurado em 1964, para atender os filhos dos servidores do estado, precisamente os da turma do IPE. Segundo me contou uma vizinha dona Rosy Miranda, 69 anos, 61 vividos em Santa Quitéria escolheu-se para a obra, à época, a mais bela casa do arrabalde. A mansão era um hiato em meio à paisagem suburbana da região, uma das mais antigas zonas operárias de Curitiba.
Trata-se de um chalé à moda europeia, sonho de consumo entre 1940 e 1950. As construções exibiam frufrus às pencas: cúpulas chinfradas, varandas dignas de receber o grande Gatsby, pedras e gradis cheios de nove horas. Fora lareira, sótão e salões de inverno. Extravagantes, porém aconchegantes, eram um santo remédio para os insones, um ninho para os apaixonados, um sanatório para os destemperados.
O historiador Marcelo Sutil escreveu tese sobre essas moradias. O artista plástico Valdir Francisco as estuda com paixão de adolescente. O arquiteto Aírton "Lolô" Cornelsen chegou a declará-las "hábitat natural dos curitibanos", espinafrando a frieza da estética modernista, da qual é um expoente.
Mesmo havendo tanta gente que cultua os chalés, bangalôs e variações, poucos imóveis do gênero estão protegidos pelo patrimônio histórico. Há quem os considere um chulé arquitetônico. Não à toa, podem virar poeira sempre que apetecer. Nesse sentido, é um milagre o palacete do Santa Quitéria estar em pé, para alegria dos seus 100 funcionários e das 540 crianças que o frequentam. Dá gosto ver a diretora Danielle Bittencourt [foto] e a petizada enchendo de oxigênio o cansado imóvel da Rua Bocaiúva. Tomam sombra ao pé do flamboyant. Acham bonito ouvir estalos do assoalho. Circulam numa boa pelo passado.
Dá para dizer que a "culpada" de tudo isso é dona Nice Braga. Ela ainda ocupava o tedioso cargo de primeira-dama do estado quando recebeu a placa em homenagem. Mostrou-se grata pra valer. Da inauguração, até 2009, um ano antes de morrer, já octogenária, a mulher de Ney Braga cruzou distância entre o Batel, onde morava, e o Santa Quitéria, ajudando a fazer da escolinha de bairro um centro de ensino a quem os pesquisadores de pedagogia, salvo engano, ainda devem uma atenção.
Para quem duvida, um aperitivo: o "Nice Braga" implantou uma cidade-mirim antes mesmo do Colégio Lins de Vasconcellos, no Bom Retiro, fazer o mesmo e ficar nacionalmente conhecido por isso. A benfeitora criou para a piazada o "Armazém do Salomão" [não era o Soifer], o "Banco do Tutu" e o "Posto Calhambeque". Até hoje os estabelecimentos de brincadeirinha são mantidos, com outros nomes e novas utilidades. E a biblioteca do vilarejo é chamada de "Niceteca", um mimo.
A ligação de Nice com a escola foi tamanha que virou lenda. Diz-se pelos ventos do Santa Quitéria que o endereço era casa de campo dos Braga. Ambos teriam decidido doá-lo em prol das vilas. A filha Nice Maria, a enteada Sílvia e a sobrinha Estela negam que a propriedade pertencia ao casal. Nice não fez repasse de escritura, deu parte de sua vida àquele projeto é o que importa.
Em tempo. O casarão do Santa Quitéria teria pertencido ao médico Cid Albuquerque. Dado ao hipismo, usava o terrenão dos fundos para abrigar seus cavalos. Daquele clã saiu o cavaleiro Luiz Fernando Marcondes Albuquerque, um campeão. Não se sabe se o imóvel ainda pertencia à família quando foi desapropriado, nos idos de 1960, para abrigar a creche. Paciência para a história contada nas ruas ficou como a casa bonita que dona Nice doou para educar as crianças. E se diz que o fez até o fim, como cabe a uma dama.