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José Carlos Fernandes

Menino Jesus dá duro no Cajuru

Há duas semanas, conheci a Vila Menino Jesus. Confesso: cheguei a pensar que esse lugar não existia – que era balela, um marketing social natalino para atrair papais-noéis pilotando vans lotadas de brinquedos. "Fica no rumo da Coca-Cola", me informaram, apontando o dedo na direção do céu, bem na hora em que passava um avião da TAM. Vira aqui, desce ali e só se vê aqueles corredores infinitos de sobradinhos que enchem de tédio o velho Cajuru. Nada de vila. Melhor seria ir para a Terra Santa, no Tatuquara, e fazer por lá contatos imediatos de terceiro grau com o Menino Jesus.

Mas na hora em que o asfalto acaba, a gente descobre que a Vila Menino Jesus existe, pequenina e espremida entre o Centenário e a Vila Camargo. Soma 527 domicílios, onde vivem 1.908 pessoas, praticamente uma Suíça, se comparada aos gigantescos bolsões de pobreza Audi-União, Sabará e Formosa.

Com sebo nas canelas, dá para conhecê-la em 30 minutos. Mas aconselho fazer uma peregrinação poética: primeiro reze às margens do Córrego Natália Reginatto – dizem que ainda tem salvação. Depois suba pela Rua Fraternidade, desça pela Solidariedade, e assobie "sem lenço, sem documento" ao cruzar a Rua Alegria. Tome ali um sorvete a 50 centavos – uma pechincha. Só não seja afoito na Rua Harmonia. Os moradores, aos cochichos, dizem que devia se chamar Rua da Discórdia. É onde mora o perigo.

Houve tempos em que a Vila Menino Jesus contava três homicídios por semana – o que dava uma barbaridade de mortos por metro quadrado. Culpa da vizinhança. A vila sofre de síndrome de Oriente Médio. Está mais perto do que devia da BR-277 e do Trindade, onde quem manda, como se sabe, não é o Pai, nem o Filho nem o Espírito Santo. Em miúdos – tem quem more noutras bandas, e venha bater com as botas no solo sagrado da Menino Jesus. É o que se alardeia.

Há 20 anos, havia ali um campo de futebol. Respirava-se ares da roça em três alqueires de sossego. Como a área estava dando sopa, recebeu de uma leva só a caravana dos sem-teto e dos que compraram terreno num loteamento clandestino. Não foi nenhuma Canaã. Os dois grupos não falavam a mesma língua, de modo que até hoje o povo da Menino Jesus bate-boca sem muita cerimônia. É o que se fala.

Eu diria que a Vila Menino Jesus é uma pílula do Brasil. Tudo o que se vê em larga escala no noticiário, acontece ali em miniatura – inclusive enchente. Como mostra um estudo da Cohab feito ano passado, a população é jovem: 21% está na categoria "Menino Deus" – de 0 a 11 anos; e 20,8% oscila na faixa dos 18 aos 30 anos. Escola é luxo só. E das 496 famílias cadastradas pela Cia. de Habitação – Virgem Santa – 308 têm mulheres no comando.

Vê-se de tudo por lá – meias-águas, gente vendendo Q-Boa em conta, comércios ajeitados feito o Deise Hair e o Marli Modas, barracos prestes a beijar a lona, como a da ribeirinha Marli Masba. Com tanto bacuri, até erra na conta. "Tenho cinco filhos, com 2, 9, 10, 14, 16 e 17 anos. Deu seis? É que tenho de mandar uns dormir na casa dos outros."

Os outros são a maior graça do local. Podiam se chamar Baltazar, Gaspar e Melquior, mas atendem pelo nome de Terezinha, Daniel, Onélio ou Moisés. Terezinha Pinheiro é das veteranas. Numa conversa tola sobre o nome da vila, revelou-se uma profeta em terras infiéis: "O que vocês têm contra o Menino Jesus?" "Nada não, senhora", respondeu um. O assessor parlamentar Daniel fala até em erigir uma praça ao ilustre padroeiro. Os 50% de evangélicos, divididos em cinco confissões diferentes, não vão se zangar. O garoto é zona franca da fé.

Onélio Berto faz o gênero morador ilustre. Há 13 anos, era agricultor em Jesuítas, no Paraná de dentro. Em meio a uma crise na lavoura, viu que cada um dos quatro filhos não vestia duas camisas. Retirante na capital, empenhou o dinheiro das terras num lote "8 X 20" sem escritura. Foi para as cabeças e virou autoridade moral da Vila Menino Jesus.

Quanto a Moisés, o Duarte, estava entre os que jogavam pelada no campinho antes da ocupação. Mas fugindo à regra, não driblou a escola. É psicólogo diplomado e desenvolveu o que chama de "psicologia comunitária". Pelo seu divã passa a regularização fundiária e a juventude transviada, a luta pelo antipó e casais em guerra conjugal. O atendimento custa "R$ 30 ou paga depois" – a maioria fica com segunda opção.

Pudera. Cerca de 25% da população local está desempregada, 14% é autônoma sem previdência e 34% assalariada. Dureza. A vila mora longe do céu. Mas deixe estar. Onélio garante que logo-logo vai dar para pescar lambari no córrego. E que a Fraternidade há de ganhar asfalto. Ah! Ele mais o Duarte mandam feliz Natal a todos. Apareçam.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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