Se na Venezuela alguém jogar uma pedra para o alto, a chance de cair na cabeça de um parente meu é enorme. Tenho por lá sete tios e respectivos pares, mais primos e primas, seus cachos uma infinidade de gente que nem sei. O curioso é que todas as vezes em que conto essa piadinha tola recebo de troco caras e bocas, como se falasse de Burkina Faso ou da fictícia Molvânia. Costumo ouvir coisas como "não conheço ninguém que tenha parentes na Venezuela", "mentira", "você não tem cara de venezuelano" ou nada mais que: "Venezuela?"
Explico que minha família é portuguesa e que, se os portugueses voltassem todos, em Portugal não caberiam. Andam a esmo pela Inglaterra, África do Sul, Austrália, Estados Unidos "sítios" por onde tenho gentes e Venezuela, país, aliás, que preferem ao Brasil, por ser bom de fazer fortuna. Mal termino a frase e recolho mais espanto. "Fortuna?". Fica uma certeza: somos tão alienados sobre a América Latina quanto os norte-americanos sobre o Afeganistão.
Em se tratando da Venezuela, arrisco dizer, o estado de ignorância é ainda pior, é global. Uma conhecida minha, mulher muito bela, vivia em Londres. E, sempre que sentava num pub e contava ser brasileira, os homens deduziam que ela estava disponível para o sexo sem cobranças, sem juízo e sem culpa. Para se proteger, passou a mentir que era "venezuelana". Seus problemas acabaram. Diante do desconhecido, os assanhadinhos recuavam. Fica a dica.
Mea culpa, mea maxima culpa devo dizer que me incluo na lista dos incultos. Sei das rainhas de beleza, claro, e minha preferida ainda é Maritza Sayalero, coroada Miss Universo em 1979. Sei do petróleo, do Chávez e tal. Do maestro Gustavo Dudamel. Dos encantos de Isla Margarita, onde trabalha meu tio Francisco. Do caos de Caracas, cidade do tio Antoninho. Embora admita o valor de Capriles, nutro cá minhas simpatias por Maduro. Não me queiram mal por isso.
Ainda esta semana minha tia Carminho [assim mesmo, no masculino] me perguntou pelo Face quando é que apareço para uma visita, es muy cercano, pá. Dissimulado como um personagem de Eça de Queirós, enrolo lembrando minha vida corrida, meu bolso furado, a pressão baixa que sinto nas terras quentes, sem revelar que a Venezuela está, sei lá, na 79.ª posição no ranking das fronteiras de minha curiosidade. Sinto muito, tia, mas quero sassaricar é na Colômbia. Da Venezuela, por ora, só me interessa saber o paradeiro da tia Ângela Gomes Henriques, que há 40 anos não manda notícias. Se murió?
Cá com meus botões, boto a culpa nas aulas de Geografia do ginásio. Diante do mapa múndi, nós, guris de calças curtas, descobríamos a América. Víamos o Atlântico e, de frente para ele, o Brasil, um gigante pela própria natureza, de bunda para todo o resto do Mundo Novo. Um soberano em meio às republiquetas que, ó, "não falam a língua de Camões". Só nos faltava sair marchando.
Com o tempo, a empáfia se vai. A pujança argentina e a prosperidade chilena "mesmo tão fininha" fazem doer nossos cotovelos. Entendemos o mal que fizemos ao Paraguai. Tiramos férias em Machu Picchu. Amamos a Macondo de Gabriel García Márquez. Descobrimos que nosso portunhol é uma piada... Tudo concorre para colocarmos o rabinho entre as pernas. Mas suspeito que mesmo assim, nada nos aproxima da Venezuela. Foi desse modo mesmo nos anos Chávez, quando o país reinou no noticiário.
Perguntei uma vez à tia Clarinha, em visita ao Brasil, que tal era o "comandante". Disse que não fazia a menor diferença. E que nós dávamos importância demais a esse assunto. Depois prosseguiu me contando do comércio do marido, da casa sempre em reformas e que mal tinha tempo de sentir saudades de Portugal se o peito apertava, tomava o voo direto Caracas-Funchal e pronto, abraçava a mãezinha e voltava. O mundo visto da Venezuela lhe parecia ir muito bem, obrigado. Acatei, mas confesso que achei a revolução bolivariana um tédio. Ou pelo menos assim nos parece olhando daqui, um ponto perdido da América Latina, assombrado pela própria grandeza.
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