Foi uma senhora surpresa. Em fins de 2014, na Assembleia Legislativa do Paraná, durante uma homenagem ao educador Fernando de Góis – o “monge pé de chinelo”, idealizador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros – um grupo de mulheres invadiu o forte apache, apossou-se da tribuna e rasgou o verbo. Falaram como se não houvesse amanhã. Moradoras da Vila das Torres, elas vestiam camisetas com fotos estampadas de adolescentes assassinados pelo tráfico. Pediam justiça. Estavam ali, sobretudo, na pele de mães dolorosas, pondo à mostra o pesar pelos filhos mortos. À revelia do conteúdo fúnebre do protesto, aquele dia teve um gosto de açúcar. Por minutos, o silêncio obsequioso imposto às mulheres da vila cessou – eis o sabor.
A Vila das Torres é um apêndice da hoje extinta Favela do Capanema, reduto dos órfãos da Geada Negra de 1975. Na década de 1980, um projeto de desfavelização varreu do mapa não só os barracos, que cederam lugar ao Jardim Botânico, como, por tabela, o próprio nome do bairro, sepultado depois de um referendo popular. Sobrou apenas uma pequena comunidade dentro da antiga favela, às margens do Rio Belém, de nome Vila Pinto, em homenagem a um de seus moradores – Jesus Pinto de Farias, um nobre, me permitam lembrar.
A maioria dos curitibanos deve pelejar para citar um mínimo de cinco ocupações irregulares da capital, dentre as 254 no total. Mas é raro um que desconheça a existência da Vila das Torres, a “Pinto” de outrora
A maioria dos curitibanos deve pelejar para citar um mínimo de cinco ocupações irregulares da capital, dentre as 254 no total. Mas é raro um que desconheça a existência da Vila das Torres, a “Pinto” de outrora. Os motivos de tamanha popularidade ultrapassam os dedos da mão. O primeiríssimo deles é que a vila fica debaixo do nariz da gente, a caminho do aeroporto e na vizinhança do mais conhecido cartão postal da cidade, the Botanic Garden. Some-se a essa, outra fonte infinda de ibope – o noticiário policial, esse sacana.
Entre meados de 2013 e fins de 2015, por exemplo, os estampidos que se ouvem por lá resultaram em 52 mortes, estatística que colocaria em estado de emergência as forças de segurança da ONU. Mesmo com números tão sangrentos, a pecha de lugar violento é reducionista – um pecado. Com 6,5 mil moradores, a “Torres” é um modelo de organização comunitária – mesmo quando seus líderes estão em pleno pega-pra-capar, provocados por desacordos partidários ou pelas picuinhas próprias da convivência em 199,4 mil metros quadrados, o equivalente a 30 metros quadrados por pessoa. Um aperto.
Num mundo perfeito, alguns dos líderes da Vila das Torres seriam chamados para falar a administradores, assistentes sociais, antropólogos e quetais, a exemplo do que se deu, em tempos idos, com o Valdir Pipoqueiro. A vila, afinal, tem clube de mães, biblioteca, museu, uma praça erguida pelo povo, saco por saco de cimento. O logradouro não é tão gracioso quanto a Praça de Bolso do Ciclista, no Centro, mas tem seus mimos. Fica na rua principal, a Manoel Martins de Abreu, e conta com um cuidador mor, o comerciante José Francisco Sanches, o Baleia. Quem nunca viu, sorry, não viveu.
Tudo isso é para dizer que a vila é sofrida pra diabo, mas está longe de ser uma coitadinha. Melhor admirá-la do que se condoer em pena. Prova de seus brios está no fato que defende a maior parte dos pênaltis que lhe desferem, sem dó. À revelia das muitas virtudes, contudo, peca – ou pecava – na baixa participação feminina. Tudo bem – a vila tem a Irenilda Arruda do Clube de Mães, a Maurina Carvalho do conselho tutelar, a Maria José Mendonça – uma das primeiras a protestar contra o tratamento infame dado pela imprensa à comunidade. Essas (e outras) são mulheres empoderadas, hábeis em mirar ossinhos de quaisquer canelas, mas representam – ou representavam – uma minúscula parcela dos ativistas da redondeza.
O tráfico, a pobreza, as imposições do mundo do trabalho (leia-se pesados carrinhos de papel) se mostram armas habilíssimas para calar as mulheres. Precisam proteger os filhos, que, como elas, estão na ponta de lança da violência. Assim tem sido, salvo exceções. Naquela noite, na Assembleia Legislativa, ficou a esperança de que esse apartheid tinha ficado no passado. A mulherada da vilinha empobrecida mais famosa da rica capital paranaense enfim saía da toca e se engajava num movimento mundial – o da grita feminina. Foi quase.
Com essa rotina quase protocolar, as “Mães das Torres” juntam os dedinhos da “Criação” e se conectam às “Damas de Branco”, de Cuba; às “Mães da Praça de Maio”, da Argentina; ou às “Mães pela Igualdade”, do Rio de Janeiro, para citar três coletivos de mujeres absolutas que balançam berços e embalam mundos
O grupo ganhou corpo e adotou o nome de “Mulheres Guerreiras”. Goza da tutela do Centro Educacional Marista Irmã Eunice Benato e do Centro de Referência em Assistência Social Vila Torres. Até pouco tempo, as participantes – mães ou não de filhos mortos pelo tráfico – se reuniam mensalmente em parques da cidade, como o Barigui, o Bosque Alemão ou qualquer endereço que lhes permitisse ver a vila de longe, por no mínimo duas horas. Em tais ocasiões, tiram fotos, muitas fotos. Fazem piqueniques regados a conversas tolas, algumas ao pé do ouvido. Impressiona como, em meio às miudezas, começam a falar de si: “Estou velha”, diz uma delas, do alto de seus 25 anos. Calculem o resto da frase...
Com essa rotina quase protocolar, as “Mães das Torres” juntam os dedinhos da “Criação” e se conectam às “Damas de Branco”, de Cuba; às “Mães da Praça de Maio”, da Argentina; ou às “Mães pela Igualdade”, do Rio de Janeiro, para citar três coletivos de mujeres absolutas que balançam berços e embalam mundos, mais ou menos como no ditado judaico. Não são só jujus e balandandãs, deve-se dizer. Poucas “mães das Torres” se sentem à vontade para mostrar a cara, por medo de se virem sujeitas aos caprichos dos pirralhos da contravenção. Hoje está tudo bem, mas amanhã, por nada e coisa nenhuma, a Rua Guabirotuba – linha divisória das gangues inimigas – pode amanhecer uma filial da Faixa de Gaza.
Noves fora, as mães ainda estão por repetir a performance feita na Assembleia Legislativa, quando se soltaram. Por ora, ocupam-se dos nós. Em maio último, num desses passeios das “guerreiras”, as assistentes sociais e psicólogas que participam do projeto propuseram uma brincadeira – para logo depois do bolinho com guaraná. Todas toparam, incluindo as passadas dos 60, feito gurias às voltas com o primeiro amor. A despeito das peças que a vida lhes pregou, soltaram poucas e boas, riram alto. Animariam uma standup comedy, se preciso. A dúzia de participantes do dia foi amarrada a metros e metros de fio de juta, nas canelas, nos pescoços, nos braços. Formou-se uma maçaroca de fazer concorrência às empresas de telefonia. Nem a mais paciente das monjas seria capaz de desatar tanta linha. Hildas, Lorraines, Cristinas, Jupiras, Alessandras e Lucianes fizeram a negociação de cada laço mal dado. Mataram a charada. Enroladas e sozinhas são impotentes. Enroladas, mas juntas, quem é que segura?
Teve também uma segunda brincadeira, dos sonhos. Cada “mãe das Torres” ganhou um papel branco preso às costas. E canetas hidrográficas. Puseram-se a desenhar e a escrever, de forma alternada, nas folhas dadas às colegas, qualidades que elas tinham e não conseguiam ver. Fez-se silêncio, pois é nele que a alma bota seus ovos, como afirmava o poeta Robert Frost. A leitura surpresa desses pequenos testamentos afetivos deixados umas às outras culminou numa explosão de abraços, que só vendo. Foi o clímax desse que se tornou um “auto de luto e ressurreição” – em meio a um mero passeio no parque. Ah, a vida.
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