• Carregando...
Foto: Albari Rosa | Arte: Felipe Lima |
Foto: Albari Rosa | Arte: Felipe Lima| Foto:

Se as contas de Liège Meyer estiverem certas, ela dá aulas particulares há exatos 59 anos. Não tente calcular quantas tabuadas essa mulher tomou, nem os ditados que ditou. A própria mestra se furta de contabilidades. Só confessa que viveu.Tudo começou nos idos de 1950, quando era normalista do Instituto de Educação e pupila de Helena Kolody. Estimulada pelo pai – o decorador de paredes Arthur – passou a cartilha para as meninas Silmara e Sildemara num belo sobrado da Rua Saldanha Marinho, ainda em pé por testemunha.

Gostou tanto que mesmo ao ser efetivada no Grupo Escolar Conselheiro Zacharias – aquele onde Jânio Quadros estudou – continuou socorrendo os piás e gurias assombrados pelo maior dos pesadelos infantis: a bomba.

Não deu outra – virou figura mais popular do que Dalton Trevisan, seu vizinho ilustre no Alto da XV. A placa grande – "Aulas particulares" – fincada no jardim do casarão erguido em 1943, na Almirante Tamandaré, ainda atrai alunos, inclusive os que outrora passaram na admissão do ginásio graças a Liège.

"Oi, professora, lembra de mim?" Há quem peça para entrar e rever os pés de pitanga, as damas-da-noite, as malvas e a sala de aula no fundo do quintal, pequeno liceu doméstico apinhado de carteiras tão antigas que só lhes faltam tinteiro e mata-borrões.

Foi ali que me sentei com Liège e sua irmã Geni, também professora. Falamos de cadernos de caligrafia e de histórias para quem gosta de ensinar. A propósito, não as tomem por duas personagens do seriado Túnel do Tempo. São divertidas. Tanto têm a contar que acordam no meio da noite, feito colegiais, para trocar confidências. E se houver jogo do Coxa, ahã, disparam um arsenal de piadas contra os atleticanos. Em respeito aos cabelos brancos, os sábios se calam.

Quanto às memórias das manas, não cheiram a naftalina. Gostei dessa: cada uma delas adotou um irmão temporão. Liège cuidava de José. Geni, de Gilberto. Mas um deles não dava conta de cantar de cor o Hino Nacional, o que é "inadmissível para um Meyer."

Liège pôs o guri ao lado do fogão de lenha e não o largou até que fizesse todo o longo percurso às margens do Ipiranga. Mas no dia seguinte, eis que se viu reprovado na mais excelsa das virtudes cívicas. "Perseguição...", vaticinaram, araras, pois sabedoras dos pecadilhos da sala de aula.

Feito um cisco, Liège saltou do Alto da XV ao Alto da Glória tomar satisfações com a professora do garoto. E o fez cantar tudo de novo, sem engasgar no "mas, se ergues da justiça..." As ex-damas de ferro riem às pampas – foi a aurora de suas vidas.

Nos anos 1980, porém, deram de se sentir candidatas aos antiquários do Largo da Ordem. Os guardapós quarados e alvejados com anil tinham dado lugar aos agasalhos esportivos. E não se ouvia mais o coro a dizer "bê com á = bá....". No lugar, discursos complicados sobre alfabetização. Aposentaram-se, conformadas em se tornar aquelas senhorinhas por detrás das cortinas de renda.

Mas eis que os alunos não pararam de pedir aulas de reforço a Liège. Ela permaneceu na ensinança, mas não sem um plano B. Aos 77 anos, soma 320 medalhas de natação, a maior parte na categoria nado de costas 400 metros. "É duro vencer as japonesas de Maringá", alerta. No dia em que a conheci, ouvi-a recomendando ao pai de uma aluna que lhe tomasse a tabuada "de trás para frente". Hum, deve ser como nadar de costas. Suspeito ser o método Liège. E aposto que funciona.

Em tempo. Quando mocinha, Geni sonhava ser médica, só que o pai a queria normalista. Ao se tornar pensionista, remediou: deu de ler tudo sobre saúde. É hoje a doutora de seu pequeno clã. Se a mana reclama dor do lado ou acusa uma íngua, apressa-se no diagnóstico. Nunca erra, garante Liège. A nota é 10.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]