| Foto: Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O carpinteiro Nelson Dorigo faz pouco caso do surto de alegria e êxtase que sua oficina provoca nos visitantes. “Aqui, tudo é velho”, dispara. Não se refere só ao maquinário (sua serra fita alemã, por exemplo, data de 1928), mas a si mesmo e ao irmão e sócio, seu Nadir. Nelson tem 82 anos; o mano, 77. Um anda mal das pernas, o outro dos joelhos. Vão se aposentar, breve. O barracão – na Travessa Romédio Dorigo, 38, Água Verde – é de 1954, somando 62 anos de serviços prestados. “Menino” mesmo, só o Chevrolet azul piscina, placa AIM 5674, fabricado em 1976. Bonito, leva passada de mão de quem pisa no estabelecimento.

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A “Oficina dos Dorigo” não figura entre os pontos turísticos da capital. Não é um “brinco” nem nada. Sua graça está em ter camadas geológicas por baixo de pilhas de serragem que se espalham por tudo que é canto, sem cerimônia, para alegria das vassouras. Formam uma paisagem – categoria “peça experimental do FTC”. Causam impressão a luz difusa e as paredes que não veem tinta, arrisca, desde que Maria Polenta pôs no lugar a clavícula de seu último cliente. Atente para as bigornas – uma delas pesando mais de 237 quilos –, à imponência da desengrossadeira, da respiradeira, da tupia... Não faz feio nem a morsa gigante inventada por Nelson com as sucatas de um Alfa Romeo.

No futuro próximo em que os Dorigo não vão mais pular da cama às 5h15, feito monges, para abrir a oficina às seis, sumirá do mapa um endereço tradicionalíssimo. Mais do que isso. Desparecerá também o local onde se produziu por seis décadas um “artesanato industrial” à beira da extinção: a decoração de carrocerias. Difícil quem não tenha visto uma sem deixar cair o queixo. Tudo indica que a moda começou nas carroças, nos tempos em que os Fords Bigodes ainda não exigiam 18 horas diárias de expediente, e continuou nos caminhões.

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Na linguagem atual, a técnica seria o que os artistas de rua chamam de “estêncil”. Faz-se um desenho num molde vazado, no qual é aplicado tinta, uma camada após outra, com matrizes diferentes, formando um caleidoscópio parecido com as alucinações de Timothy Leary. Em três dias de secagens e sucessivos jatos com pistola se tem um caminhão customizado, sob medida para provocar admiração na gente da cidade e do campo.

A decoração de carrocerias é um “artesanato industrial” à beira da extinção

O artesão Nelson Dorigo nunca fez as contas de quantas carrocerias emperiquitou com seus losangos e florais art déco. No chute, foram na casa das cinco por mês, 50 por ano, o que resulta em próximo de 3 mil até a presente data. A maioria das “caçambas”, é provável, está fora de circulação. O auge foi na década de 1960, quando comerciantes bem-sucedidos tinham entre seus luxos desfilar num veículo de carga categoria ostentação, pintado pelo mestre Nelson Dorigo. Ele é preciso na lembrança: “Os oleiros do Umbará gostavam de Chevrolet. Os negociantes do Portão iam de Alfa Romeo”.

A saga dos Dorigo se confunde à dos demais italianos da outrora Colônia Dantas. Giácomo, o nonno, emigrou para trabalhar na construção da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, no fim do século 19. Quando trocou Porto de Cima por Curitiba, seguiu a rota da maioria dos conterrâneos e se estabeleceu no ramo da ferraria. Fez a América numa das tais bigornas. Ser italiano era quase sinônimo de consertar alguma coisa – ou mesmo enfeitá-la, a exemplo dos pintores de parede – no sentido mais erudito do termo. O pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, um caso notável, pagava as contas fazendo murais decorativos para a burguesia. “Italiano não gostava de ser empregado de ninguém”, decreta um lacônico Nelson.

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Acrescente-se que a italianada, como se diz, amava pescar e caçar e estar em família a maior parte do tempo – verdadeira novela de Benedito Ruy Barbosa –, no que ajudava muito dar uma ova para os expedientes proletários. Ser dono do próprio nariz era uma condição para respirar. Um dos mais deliciosos estudos a respeito é Negócios e ócios, do historiador Boris Fausto. É certo que trata dos judeus, grupo ao qual pertence, mas irradia seu olhar sobre o cotidiano de trabalho pesado, mas de lazeres dionisíacos praticados por outros povos que cruzaram oceanos, doidos para dar bye, bye para a pobreza.

Se Nelson Dorigo se encaixa nessa tribo? Ahã. Daí sua serenidade absurda ao declarar que o tempo das carrocerias decoradas acabou. Fez o que estava destinado a fazer – “os fregueses saíam daqui sorrindo. Fiz muita gente feliz”, diz, dando ele uma banana, sem saber, para a sociedade de metas, produtividade, mil novidades por minuto, bipolaridade premiada e outras sandices pós-humanas.

Nelson – o construtor e pintor de carrocerias – estudou em grupos escolares da colônia, jogou bola perto do cemitério e até cogitou ser um craque do extinto Savoia. Deixou quieto. Aos 18, batia continência no Quartel do Bacacheri e tudo corria na base do “sim senhor”, “não senhor”, até que um superior de farda bateu os coturnos e o jovem Dorigo botou seus cintilantes olhos azuis na marcenaria da corporação. Reinou. Saiu de lá um sabido oficial da reserva – não em guerras, mas em artes e ofícios.

Não lhe perguntem como virou pintor. Não sabe, não lembra. Assim, do nada, fez os 20 caixotes de madeira que o acompanharam por décadas. Neles riscou os desenhos, recortou-os, limou-os e mandou tinta em carrocerias de peroba e angico, garapeira, cumaru e jatobá. “Tinha procura barbaridade.” Criou versões hiperlocais dos “decotoras” japoneses, verdadeiras penteadeiras sobre rodas. Foi ótimo, garante.

Hoje, os joelhos cobram o levanta e abaixa de peças de madeira com nunca menos de 120 quilos. “Os meus clientes? Ora, morreram...” A última encomenda foi ano passado – mas só da carroceria, sem os desenhos. Talvez pinte o traseiro de um último caminhãozinho antes de baixar as portas da oficina, em definitivo. Promete fotografar. E antes que lhe perguntem – não deixa seguidores. A vida tem dessas coisas, sem problemas.

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O carpinteiro e marceneiro Nelson Dorigo com dois dos moldes criados por ele, com os quais decorou carrocerias de caminhão por mais de 60 anos: um ofício de imigrantes chega ao final.
Nelson e Nadir Dorigo, com uma das máquinas mais antigas da oficina, vinda da Alemanha, em 1928.
Nelson e seu Chevrolet 1976.
Para Dorigo, auge do ofício de pintor de carrocerias foi na década de 1960, quando decorar caminhões usados na indústria e no comércio era sinal de status.
“Não deixo seguidores. Ninguém quis aprender e não tenho paciência para ensinar”, diz Nelson Dorigo.