“Somos 12 pessoas dormindo num quarto. E NÃO TEM CHULÉ...”, festeja uma das 30 e tantas moradoras de uma república que funciona na Rua Desembargador Westphalen, 1.845, no Rebouças. O local abriga mulheres e transexuais que viviam nas ruas. Tem lá seus problemas – é claro –, raivosamente relatados pelos vizinhos às atendentes do 156. Vez em quando, as inquilinas saem na unha; e no cabelo – em chumaços. Em um ano de funcionamento, cinco partiram para a ignorância e foram convidadas a procurar a porta da rua. Mas não é a regra. É uma casa como tantas – vem até namorado no portão.
Mais fácil do que presenciar um telecatch no gel é vê-las na sala, com uma bacia de pipoca no colo, assistindo à novela Além do tempo. Dá para ouvir um suspiro ou outro pelo galã Rafael Cardoso, seguidos de dois silvos breves e um longo. É que ali perto, em roda do tanque, fumódromo oficial, outro grupo faz barulho. Pratica uma arte talhada para as mulheres – a conversa, nas suas múltiplas variantes, incluindo a fiada. Nos quartos – do mesmo modo – elas falam, falam e falam. Almodóvar adoraria fazer com elas um novo Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón.
Ao reservar um teto às mulheres e às trans, a turma da assistência fez mais – devolveu-lhes a voz
A “Casa de Passagem Feminina e LBT” – nome oficial da república – nasceu para salvar as mulheres, lésbicas, travestis e transexuais da violência a que estavam expostas nos albergues tradicionais. Na hora de dormir, na hora de comer, na hora de tomar banho, não importa, elas estavam sempre à mercê do empurra-empurra na fila promovida pela maioria, os homens. Ora segregadas, ora ameaçadas, ficavam putas com razão.
Agora não mais. Na Westphalen elas são “moradoras”, título de realeza que adoram repetir, como se fosse um doce à boca. Podem fazer a mão juntas e confidenciar umas às outras as peças que o destino lhes pregou. Dizer que inventar um espaço assim foi a melhor notícia de 2015 no campo da ação social não é exagero. Até porque é verdade. Ao reservar um teto às mulheres e às trans, a turma da assistência fez mais – devolveu-lhes a voz. Suspeito que ali se pratique a cura pela palavra.
É o que mais impressiona a cada minuto passado nessa casa de um piso, 300 metros quadrados, cinco quartos – um deles improvisado na garagem –, uma Kombi branca no pátio e infinitos ruídos: de louça na pia, de roupa na máquina, de tevê no último volume, de gente formando frases com sentido – como muitos há muito não faziam. A “casa das mulheres do Rebouças” é um rap.
Há 18 servidores municipais a postos, mas nenhum ombro é tão disputado quanto o da manda-chuva Vanessa Ferreira Lang. É alta, loira, delicada, dona de um castiço sotaque das araucárias. Uma vez livre das lides burocráticas, é comum vê-la num abraço com suas hóspedes, ouvidos preparados para o serviço pesado. Pedem afago porque precisam. Uma lhe deu um anel no Dia das Mães. Nenhuma das filhas postiças de Vanessa serviria de personagem para um desenho animado da Disney.
Sueli Aparecida Cordeiro, 51 anos, padece com a bebida e se diz abandonada pelos filhos. Aline Silva de Sales, 31 anos, foi atropelada, tem o corpo mutilado e é soropositiva. A trans Rafaela Archanjo, 32 anos, sonha alugar dois quartos no Centro. Lava louça enquanto isso. Janice Rodrigues Ramos, 39 anos, 153 quilos, bota fé que a vida vai melhorar se fizer uma redução de estômago. Até problemas mediúnicos descerão pelo ralo. “Eu psicografava contos. Botei fogo em tudo o que escrevi. Tive de virar evangélica para ver se isso parava.” Ah – todas amaram o homem errado.
Ouve-se de tudo pelos corredores, menos histórias capazes de provocar bocejos. Meses atrás, três moças da República Dominicana não seguraram a onda e se mandaram. Se a rua é um trauma para todo mundo, é uma tragédia ainda maior para as mulheres e trans. “Ih, nem queira saber...”, escusam-se, para não falar de abuso sexual nas marquises, das propinas pagas aos donos da quadra, das surras, da intolerância das famílias para quem “uma mulher não deve vacilar”. Pelos cálculos de Vanessa, metade das 450 sem-teto que circularam pela residência em 2015 tinham algum tipo de sequelas físicas e psicológicas. Pudera – elas viveram entre 18 e 59 anos, e mais alguns séculos.
A casa oferece pencas de cenas redentoras – e até divertidas, como a da turma do tanque. Mas também demolidoras, como a da “hora do remédio”. A horas tantas, uma das servidoras sai pelas dependências com uma bandeja apinhada de frascos marrons. Em cada um, um nome de mulher, com seus devidos coquetéis e antidepressivos. “Me faz mal, prefiro beber”, conta Sueli. Risos.
Relaxem – de repente, o papo fica animado como quermesse. “Sabia que eu já saí na Tribuna?”, alivia Sueli. Ela foi cobradora de ônibus por 15 anos e, para além da chatice de contar passageiros na roleta, teve a desdita de sentir uma arma na cabeça e outra lhe arrombando o caixa. “Assalto, gente.” Diz que é passado – prefere o presente, como guardadora de carros no Centro Cívico. “Não trabalho com pobre” (mais risos).
E dá-lhe algumas deliciosas confidências sobre sua clientela que tem mandato. “Sabiam que eu estava no olho da manifestação dos professores. Alguém gritou FDPê pro PM. Foi assim que começou a quebradeira...” Plateia para Sueli, que tem munição para uma noite inteira. Até que ela chora. A casa é assim, um rio.
Na cozinha, a trans Rafaela foge das muvucas. “Melhor ficar num canto do que falar merda, né?” É simpática, jeitinho de Poliana. Fala da vida madrasta com a delicadeza de quem usa punhos de renda. O pai não aceitou que ele era ela, o que lhe rendeu amarguras em série: abandono escolar ainda no primário e noites no sereno. “Em 2000, conheci a pedra...” Foi uma lenha. Pano de prato no ombro, diz que a sorte, se existir, há de encontrá-la ali, numa casa de gente, entregue à pia de louça.
Esta coluna é dedicada à assistente social Sueli Cortiano – que sonhou a “casa das mulheres”. À mãe do povo da rua, Vanessa Lang, e sua equipe. A Rafaela Archanjo – que os anjos venham em seu socorro.
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