| Foto: Foto: Pedro Serápio / Arte: Felipe Lima

Dia desses, baixou Malba Tahan no professor de Língua Portuguesa e Literatura Carlos Alberto Sanches. Pôs-se a calcular – e deu “obas” à vida. Em 2015, esse sinhoire ora bem-posto em ternos escuros ora em chapéu panamá completa 50 anos de magistério. Se a conta não lhe trai, de 1965 até os dias de hoje – dias em que ainda oferece aulas particulares de gramática e afins – foram assombrosos 175 mil alunos.

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É o equivalente a 17% de Portugal, país onde nasceu, na aldeia de Bemposta do Douro, partindo de lá para a distante Curitiba, descrita por ele, então, como arcaica, fechada, úmida, báltica, um lugar de estranha simbiose entre simbolistas e parnasianos. “Sou do tempo em que o Dalton Trevisan falava com a gente.”

A imensa classe que formou nas cinco décadas em que adotou os pinheirais, claro, não lhe dá sossego. “O senhor deu aula para meu pai”, escuta, esteja na farmácia ou cumprindo sua maratona diária de cinco quilômetros de corrida, um dos segredos de seus 74 anos, sempre colocados em dúvida. “Mentira.” Diverte-se com o assédio. Para quem teve formação scholar, a popularidade é um ponto fora da curva.

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Sim, Sanches é vaidoso – e talvez não pudesse ser diferente. Esse sujeito de voz abafada, inteligência aos galopes e dado a surpresas – não se espantem se abrir aspas no meio de uma conversa para replicar um trecho inteiro das melhores prosas – tem seu nome inscrito na história da educação brasileira. É o que sempre afirma, embora, me permitam, os historiadores da educação devam lhe fazer caretas pelas costas. O mestre faz que não vê, preferindo lembrar o lhe dizem os ex-alunos: “Na sua aula eu aprendi”. Soa como música. Às falas.

Não tentem deter o professor Sanches quando sua máquina das memórias for acionada

Carlos Alberto Sanches não é o inventor dos cursinhos pré-vestibulares, das apostilas, dos terceirões nem dos tablados em que um professor showman circula munido de microfone – e canta, e distribui macetes, e faz rir, acenando entre piadas uma vaga nas melhores universidades. Mas tem parte nisso. Nos meados da década de 1960 – numa cidade de menos de 600 mil habitantes e míseras 85 linhas de ônibus –, criou seu próprio cursinho, o Camões, numa homenagem ao ilustríssimo patrício. À época, o pioneiro do ramo, o “Barddal”, aprovava os candidatos a vagas em biológicas; o “Dom Bosco” botava porta adentro a turma das exatas. Caberia ao recém-nascido Camões – instalado com 15 alunos, na Galeria Lustosa – ser um marco no campo das ciências humanas. Pois dançou o Vira e virou.

Não tentem deter o professor Sanches quando sua máquina das memórias for acionada. Ele se torna impossível – um personagem de Umberto Eco, dado a iluminuras, filosofias e esoterismos, tudo na mesma bacia doirada. Um barato. Dá garantias de que o primeiro simulado e o primeiro aulão de véspera do Paraná foram feitos no Camões, colégio que – aleluia 2001, uma odisseia no espaço – tinha um computador que era primo do Hal 9000, isso numa época em que os curitibanos ainda se norteavam pelo relógio de roldanas da catedral. Mais – a cidade dançava iê-iê-iê nas garagens quando o portuga já fazia pesquisa de opinião entre os estudantes.

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Antes que lhe atirem pedras, saca da gaveta uma apostila pré-histórica, mimeografada (infantes, milhares estudaram graças a um rolo de alumínio movido a manivela). “Veja, tinha profundidade...”, provoca, ao folhear o calhamaço, em resposta à acusação de que os pré-vestibulares passaram o rolo na boa educação, de que promoveram tinhosos cursinhos Walita em substituição à saborosa comida dos fogões a lenha.

“As apostilas do ‘Moderno Curso Camões’ chegavam ao interior do Paraná. A gente trabalhava – pregava cartazes do colégio por aí, com cola de araruta. As escolas tradicionais demoraram a perceber. Não sabiam o perigo que a gente representava”, comenta Sanches, sobre essa saga à procura de um autor. Suspeito que a história dos cursinhos é mais contada em botecos, pelos entusiastas, do que na academia, onde está destinada aos rodapés. São como os pulp fiction para a literatura ou o colunismo social e policial para a imprensa. Mas é difícil mantê-la muito tempo atrás do rótulo.

Os cursinhos oxigenaram as práticas didáticas e inventaram o ensino de massa (expressão para a qual Sanches reserva o mais cabeludo dos palavrões. É sua autocrítica). Tornaram-se irresistíveis, para desgraça dos colégios de freiras. Basta lembrar que em meio a suas fileiras havia um professor de nome Paulo Leminski. Claro – além de desossar os conteúdos, o professor tinha de cantar, tocar, declamar e encantar. Para lecionar, tinha de ser o cara. Paulo não foi o único desse panteão, mas é com folga o mais celebrado. Os “aulões” foram os maiores palcos por onde o “Polaco” circulou – lecionava no Curso Abreu.

Com respeito ao jornalista Toninho Vaz – autor da saborosa biografia O bandido que sabia latim –, Sanches é o que mais sabe da incursão de Leminski pelos auditórios de aula; é autor, inclusive, de uma monografia a respeito. Conheceram-se em 1962 – “ele falava de Ezra Pound”. Foi amizade à primeira vista. E parou-parou.

Não lhe peçam palavra. Ainda que tenha fôlego de piá, Sanches alega muita idade e pouca paciência para a animosidade que ronda as tentativas de “reler” o poeta. Prefere engatar uma conversa intensa sobre dom João VI, um dos muitos assuntos com os quais faz malabarismos. “Você já ouviu falar de mirandês? Era a língua do meu pai” – e segue, traduzindo vocábulos na fala estranha do além-mar. Sugiro que lhe deem um palco num miniauditório – com microfone. Não sei se o que ele conta cai hoje no vestibular, mas bem que podia.

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