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Eu era pequeno quando ouvi um vizinho mais velho – o Gastão – contar à turminha que ganhou dos pais as chaves da casa. "E o queco", pensei comigo, usando a expressão pirada que queria dizer "e eu com isso". Tolinho. Só alguns anos depois, já em fios de barba, entendi que "ganhar as chaves" era um rito de passagem para os guris. E que, por isso, muitos marmanjos continuam exibindo o molho de chaves à cinta, qual troféu da independência.Não sei ao certo, mas acho que nasceu naquela época minha mania de reparar nos tilintares dos molhos de chaves, esse objeto que serve de inspiração para semiólogos, psicólogos, bisbilhoteiros e, claro – chaveiros 24 horas, sem os quais milhares teriam se tornado bárbaros arrombadores de portas.

Confesso que me chamam atenção as mulheres que ostentam a chave do carro presa a uma correntinha de cristais, combinando com os dedos anelados por diamantes, rumo a uma fieira de cartões de crédito. Admito que me intrigam os frades carregando na cintura as chaves do convento, como se tivessem acabado de trancafiar Deus na torre do campanário. E declaro que respeito – qual cabeças coroadas – os humildes zeladores das feras nos zoológicos. Tomara nunca percam o juízo.

O admirável mundo das chaves é uma me­­­­táfora tão porreta que os filósofos criaram o termo "chave de leitura" para mostrar que a pergunta certa ajuda a destrancar o mais obscuro dos conhecimentos. Lite­­­ratos, idem, bolaram a deliciosa expressão roman à clef, algo como "romance com chave", para tratar de personagens reais que se escondem à paisana em personagens da ficção. Estágio mais evoluído, só o papa, que, dizem, tem cópias das chaves do Céu e o poder de nos deixar do lado de fora – para sempre.

Dia desses, fiquei ouriçado ao saber que, há mais de meio século, um homem abre manhã cedinho e fecha tarde da noite as portas de ferro que protegem as vitrines de lojas no Centro de Curitiba. De pronto, imaginei-o uma espécie de sobrevivente de guerra. Em vez de medalhas, traria um molho de chaves mais sortido do que o das ricaças e dos frades. Seria verborrágico como os literatos e os filósofos. Um homem a um palmo do papa.

Mas o campo-larguense Osnir Moreira Machado, 69 anos, é um tipo de pouca fala e hábitos mo­­­­destos. Mora na Santa Cândida e só arreda o pé de casa duas vezes por dia: ao nascer do sol, quando abre as vitrines de oito lojas; e no poente, hora em que baixa as portas de ferro.

Na minha ilusão, achei que o "São Pedro do Calçadão", como insistem alguns engraçadinhos, ia me contar histórias de mascarados. Descreveria consumidores hipnotizados por liquidações. Falaria de lunáticos que se apaixonam por manequins de porcelana, tal e qual narra o norte-americano Gay Talese no delicioso texto "Nova York é uma cidade onde coisas estranhas acontecem".

Mas nada de Nova York – tirando uma lagartixa ou outra que lhe caiu à cabeça e algum mendigo em busca de abrigo, Osnir dá a entender que as cinco décadas em que pilotou trincos foram de dar sono. Duvidei. Tenho para mim que o homem das chaves viciou em ver a vida nas vitrines, essa cápsula do tempo onde a calça que é a última moda de manhã vira cafona logo mais à noite.

Em 1955, quando o Osnir piá começou a acompanhar seu pai, Júlio, abrindo e fechando as lojas Prosdócimo e Hermes Macedo, Curitiba tinha 200 mil habitantes, 250 ônibus coletivos, 1,6 mil automóveis e 7,1 mil linhas telefônicas. Como a capital cresceu, o molho de chaves só aumentou.

O Osnir moço assistiu ao nascimento do Calçadão da XV – em 1972 –, debaixo de protestos dos comerciantes. O Osnir adulto viu o comício das Diretas-Já – mal conseguia atravessar a Ébano Pereira naqueles idos de 1982. De longe, observou a travesti Gilda dando gravatas nos distraídos que flanavam pela Boca Maldita. Lembra-se do Sombra fazendo micagens. Dos trinados da Borboleta 13.

Com a chegada dos shoppings, o Osnir maduro viu o Centro perder clientes. As chaves minguaram. Até pensou em se aposentar. Resiste. Suspeita ter o melhor emprego do mundo: vê os pa­­­­trões uma vez por mês, no dia do pagamento (risos). A XV lhe parece cada dia mais linda. E os meninos, sabe-se, só são homens feitos quando têm chaves à mão.

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