Me avisaram que ao chegar à Vila Lindóia, era só perguntar onde morava o seu Garcia, que todo mundo ia saber. Não precisei abrir a boca. Bastou o carro da reportagem dobrar a esquina e já dava para ver uma moça fazendo sinal de "é ali". Ali, no número 25 da Rua Galileu Galilei, não mora nenhum astrônomo, mas um homem bom. E é por isso que na Vila Lindóia qualquer um sabe quem é o Garcia.
Francisco Garcia da Luz tem 90 anos, 1,80 metro, poucos quilos, pouco estudo, voz de trovoada e sua vida não tem nada demais. Ele nasceu em Itaiacoca, perto de Ponta Grossa. Lá se casou com Rosa e trabalhou na roça. Aos 30, deixou a enxada para vender árvores frutíferas. Se sua conta estiver certa, ajudou a vingar 50 mil pés de macieiras, parreiras e pereiras, numa rota que vai dos Campos Gerais a Apiaí, lugar mais longe onde acredita ter trocado uma muda por dois cruzeiros.
Mas tem uma conta que não fecha na contabilidade do Garcia a de quantas pessoas ajudou, desde os tempos de Itaiacoca. Quando a gente provoca para saber, ele apita um "hiiiiii" e estala os dedos. É seu sinal para cálculos difíceis. E senta que lá vem histórias. Passam pelo Patronato Santo Antônio, pela antiga Penitenciária do Ahú onde brigava para liberar presos com penas vencidas e, claro, pela Lindóia, onde mora há meio século.
Por partes. A bondade do Garcia tem data de nascimento. Foi em 1969, quando um sujeito lhe pediu 100 cruzeiros emprestados para ir ao Rio Grande num encontro do movimento católico Focolares. O vendedor ficou cismado. Para alguém se endividar por causa de uma reunião de igreja é porque o negócio devia ser muito bom. Juntou 200 cruzeiros e se mandou pra Porto Alegre, tchau.
O Focolares surgiu na Itália, em 1943, durante a Segunda Guerra, quando três moças se esconderam num abrigo antiaéreo. Uma delas, Chiara Lubich, tinha um Evangelho na bolsa. Ao ler sem saber se sairia inteira dali lembrou-se que a vida é breve e que a hora é agora. As gurias se safaram das bombas e criaram uma rede que distribui no mundo todo frases comentadas da Bíblia, todas para já.
Como a Lindóia faz parte do mundo, 450 folhetos por mês chegam à vila e são distribuídos, claro, pelo Garcia. O vileiro, por sua vez, já levou o nome do bairro para a Itália, Alemanha e Portugal, onde contou seus causos de bondade instantânea para outros focolarinos.
Certa feita, o Garcia leu num texto de Chiara que os orfanatos deveriam ser esvaziados. Foi para já: correu atrás de famílias dispostas a abrigar a piazada. Mas "hiiiiii, havia muito órfão". Sem remédio, abriu sua casa de vez para os sem-lar. Tinha três adotados de faz tempo a Aurísia, o Pedro e a Leonilda. Vieram mais o Nestor, o Yuri e... Ele e a Rosa se perdem na conta dos dedos. "E o João, mandou notícias?" A Rosa fala grosso e encurta: "Um monte de filhos."
De uns tempos para cá, Garcia, já com as pernas bambas, ajuda os outros é na Galileu Galilei, 25, mesmo. Um sino pendurado no portão avisa que tem visita. E que lá vem bomba: a turma entra e pede uma oração. Os donos anotam num cartão e levam para a "sala da Ave-Maria", um quartinho de fundos. É o abrigo antiaéreo do casal.
Garcia começa o expediente de rezador às 7 da matina. Ao longo do dia, desfia o rosário 200 aves-marias. No resto do tempo, escreve pensamentos, que depois imprime e distribui como uma Chiara Lubich do arrabalde. "Tô rezando para a Graça e pro Zigmundo e família..." Aproveita a prosa para saber se eu sei rezar. "É católico? Praticante? Hiiiiii." Digo adeus ao bom homem. Quando saio, o sino do portão tilinta. Hi, Suspeito que alguém reza por mim. Muito grato.
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