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José Carlos Fernandes

O canário da Vila Oficinas

 | Foto: Daniel Derevecki/Ilustração Felipe Lima/Gazeta do Povo
(Foto: Foto: Daniel Derevecki/Ilustração Felipe Lima/Gazeta do Povo)

A empregada doméstica Joana Maria da Silva Simões, de 58 anos, tira da caixa dos guardados a carteirinha na qual está escrito o local e a data de seu batismo. Foi em 2 de maio de 2004, no templo da Igreja do Evangelho Quadrangular do Jardim Petrópolis, Uberaba de Cima. O documento vale mais do que a certidão de nascimento. É seu passaporte. Seu diploma. Pudera.

Passada a cerimônia das águas, Joana deu de ouvir música vinda do além – uma banda inteira de violinos e cornetas flamejantes a perseguia do fogão ao tanque, da mercearia ao muro da vizinha. Não demorou muito e a crente passou também a cantar louvores que "baixavam" como que por encanto. Vinham na forma de moda sertaneja, ária de ópera, cântico religioso, toada romântica – sempre falando de Jesus. Mas aquela voz – garante – não podia ser sua. Ela explica.

A vida lhe foi dura. Nasceu em Paramirim – cidade baiana do Polígono da Seca – e dali migrou com a mãe e seis irmãos – "eu mais Maria, Belarmina, Dorvalina, Josina, Vitalina e Laurindo", vindo parar em Umuarama, no Norte do estado. Nos anos 60, parte dos Silva chegou a Curitiba, precisamente à velha Água Verde, onde Joana e Vitalina começaram a trabalhar em casas de família. Mas aos 22 anos Joana deu de ficar doente. Ao todo, passou por nada menos do que 13 intervenções cirúrgicas, além de ter enfrentado uma tuberculose que quase a levou a tocar trombetas com os anjos. "A Joca é bichada", conformavam-se os conhecidos, ao terem notícia de mais uma temporada hospitalar da pobre.

Só nas vias aéreas foram quatro operações, que lhe deixaram a sensação de "estar oca", como conta, ao apalpar o inchaço constante do pescoço. "Minha garganta é podre", resume o canário da Vila Oficinas. Apesar do gogó fechado para balanço, Joana é uma contralto, digamos, dos deuses. Faz vibratos de diva do Scala de Milão. Não desafina. Quando canta, o rosto se transfigura, seus gestos são de pluma, os olhos negros ganham o brilho da mocidade. Magnífica. "Ele canta por mim."

Quem está perto – não importa a crença – larga o que está fazendo para admirar. Há os que buscam na melodia cura e conforto. Ela canta ao telefone para quem está longe, no leito dos enfermos, no ouvido dos desesperados, de braço dado com os que encontra pela rua. "Quer que eu cante para você?", pergunta a frajola.

Eu a escutei na meia-água de fundos em que vive, na Rua Mãe Menininha do Gantois. Cantou para o visitante como se fosse um rei – "sinal de que você está bem com Deus, senão a voz embarca." Ufa!

Detalhe. A cantora mal sabe ler e escrever. Sua vida escolar se resume a três meses de madureza no Colégio Estadual Rio Branco. Do que se deduz que Alguém lá em cima deu uma forcinha para Joca guardar de cabeça os mais de 500 louvores já recebidos dos céus. Creiam – ela os entoa sempre igual, seja "Vaso transformado", seja "Canto de Miriam". Quem a conhece fica boquiaberto: cabeça-de-vento, não lembra no jantar o que comeu no almoço.

Em certos dias, entoa hinos da manhã à noite – obedecendo às ordens da banda imaginária que circula pelos três cômodos onde mora. Em outros, solta a voz no altar da Igreja Presbiteriana Renovada da Vila Camargo, à qual frequenta. Também se cala. Meses atrás, ficou mal com Deus. Pediu perdão de joelhos. Recebeu em troco uma nova canção de amor demais: "De braços abertos Eu caminhei... te encontrei... Eu muito te amei", cantarola, enquanto me acompanha até o portão. Simples como isso. "As pessoas escutam e ficam felizes". Eu fiquei.

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