Há uma década, o jornalista Ruy Castro publicou um texto intitulado "Para o Correio da Manhã, com uma lágrima". É de chorar. Tenho impressão de que poucos autores fizeram elegias aos jornais mortos, que pecado. O próprio Ruy, ao lembrar o bravo diário da imprensa carioca derrotado pelo AI-5, em 1968, e que abrigou em suas fileiras gente como Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Hollanda, escreve que "os jornais quando morrem não vão para o céu". Aos poucos desaparecem na lembrança dos seus leitores, até descansarem em paz no setor de periódicos da Biblioteca Nacional.
Não me tomem por doido varrido mas um dos maiores prazeres da vida é folhear publicações antigas. Pode ser saudade encubada ou falta de Ritalina, sei lá. Gosto muito das razões dadas por uma conhecida minha: "Jornais velhos são menos ameaçadores", diz, debruçada sobre pilhas de edições, as quais degusta antes de dormir, sem medo de perder o sono. Já em estágio de virar rolinho para acertar a fuça do cachorro, aqueles diários todos deitados no sofá lhe mostram que uma parte do mundo desaba todo dia, mas que outra se repete e permanece. Serve de consolo.
Lembro a primeira vez que a questão "do que vai e do que fica" caiu no meu colo foi ao ler O choque do futuro, do norte-americano Alvin Toffler. A folhas tantas, ele falava do "supermercado que desapareceu", referindo-se ao desmanche contínuo da arquitetura, deixando milhões órfãos das referências de infância. Em 1970, quando o livro chegou às livrarias, a idade máxima de um prédio nos Estados Unidos beirava 40 anos.
Achei exótico, pois àquela altura eu tinha a impressão de que o armazém do seu Edevar, meu vizinho, seria eterno. Pois não era. Não sei o que você sente, mas é de dar nos nervos a rapidez com que a cidade é desmontada, pondo em seu lugar aqueles caixotes envidraçados nos quais serão vendidos colchões. Assim como Toffler, a gente se vê pelejando para lembrar o que havia ali antes e não consegue dar um download. Vão nos sobrar fiapos de memória mas a memória é pródiga em nos pregar peças.
Tempos atrás, a artista plástica Teca Sandrini comentou que um sobrado antigo, atrás de onde está sendo construída, há 34 anos, a Primeira Igreja Batista de Curitiba, no Batel, teria sido a sede do jornal O Dia (1923-1960). Ali trabalhara seu pai, José Erichsen Pereira, o Jeep, um dos papas do jornalismo paranaense. Teca lembra ter circulado, guria, entre as máquinas de datilografia e homens de terno sempre com um cigarro à boca, como era costume. É uma cena bonita. Nunca mais passei pela Avenida Batel, esquina com a Bento Viana, sem lembrar do Erichsen, a quem não conheci, e de O Dia, o jornal que nunca li.
Dias atrás, consegui visitar o sobrado. "Era para ter sido demolido há duas semanas", contou o pastor Nílson, administrador do templo, sobre o fim anunciado do local, enquanto pisávamos no chão arruinado pelos cupins, à procura de sinais do que teria sido a redação de um jornal. Nada. Restou imaginar onde teriam sentado Freitas Neto, Erasmo Pilotto, Newton Sampaio e Alceu Chichorro. Ou uma chegada súbita de Moisés Lupion, proprietário de O Dia na década de 50, com o qual fazia oposição a Bento Munhoz da Rocha.
Como checar é a rotina dos jornalistas, liguei para o Cid Destefani, da página Nostalgia, infalível nessas questões. Ele quase incinerou os meus tímpanos com um berro a pleno vapor. A tal casa da Avenida Batel era o escritório da usina de erva-mate Engenho do Banco. O Dia ficava um pouco para a frente, onde hoje funciona uma estacionamento, comércio que prolifera feito a gripe da estação.
Derrotado pela realidade, quase desisti de falar do bravo jornal O Dia. Mas acho que hoje é a última chamada para o sobradinho da Batel, "aquele que foi sem nunca ter sido". Restam-lhe poucas horas em pé. Para ele fica apenas nossa ignorância sobre o que se passou ali. E a doce ilusão da Teca, que o fez merecedor de uma despedida, quiçá de uma lágrima sentida.
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