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José Carlos Fernandes

Os Cotonetes

 | Foto: Felipe Rosa e Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Felipe Rosa e Arte: Felipe Lima)

"Você já ouviu falar em bomba de flit?", perguntou-me, para começo de conversa, o dentista e cinéfilo Harry Luhm, 81 anos. Não só sei como matei muito pernilongo com elas, experiência jurássica que me credenciou a participar de um encontro da Confraria dos Cotonetes, apelido de um grupo de veteranos surgido na capital em 1996, com a intenção escancarada de cultivar o passado – nçao raro em alemão, língua em que foram alfabetizados.

Como é sabido, alemães adoram organizar grupos para tudo. Onde dois ou mais estiverem reunidos pode nascer, por exemplo, um coral ou um time de boliche. Os cotonetes – do alto de suas cabeças brancas – não fogem à regra: formam uma microssociedade, com normas rígidas e, por ora, atividades de baixo gasto calórico. Aos sábados, sistematicamente às 12h20, encontram-se para a mais nobre das práticas sociais – conversar, mas se permitindo falar alguma sacanagem, feito piás no pátio do colégio. Os homens nunca crescem, é o que se diz.

Depois da rodada de assuntos – cuja variação vai do pai do Eike Batista, com quem estudaram, aos filmes de Claudette Colbert –, saem para almoçar. Com perdão ao trocadilho, bem que tentam passar em branco no restaurante, mas é impossível: tem sempre alguém tentando ouvir do que falam. Devem se perguntar quem é essa "Didi Caillet" ou "onde fica o Cine Broadway".

Em tempo – mulher não entra, nem que uma assembleia decida o contrário, já que Harry, o presidente, tem poder imperial de veto. Guarda lá seus motivos. Anos atrás, a simpatizante Vanessa Hatschbach aparecia vez em quando, hipnotizando-os com sua graça juvenil. Sentiam-se espadachins da Marinha em festa de gala. "Até a guria cometer matrimônio", protestam, o que os deixou em estado de fossa coletiva. Precisam se proteger das aventureiras.

Pelo que se sabe, as esposas não reclamam entrada, talvez até agradeçam: o futebolzinho de outrora foi substituído por um endereço de respeito – o QG é sempre a casa do Luhm, nas Mercês, onde os maridos podem se distrair com as memórias e com as cachorras Tuca e Truddy, felizmente analfabetas no idioma de Goethe. Do contrário, se escandalizariam, recorrendo à Carrocinha.

"Teoricamente, transamos com metade da cidade", diverte-se Harry, diante de seus confrades Conrad Holdorf, 91 anos – ex-representante da Valisère, o que o torna autoridade em lingeries; Max Conradt, 79, ex-dono da loja Maison Blanche, feliz proprietário da Playboy da Marilyn Monroe; Ralf Kyrmse, 86, médico, homem de vasta cultura; e o comerciante Cláudio Hatschbach, mascote da turma com infames 64 primaveras. A trupe tem um participante em licença médica – o ex-pracinha Armando Kolbe. E uma baixa, o árabe Neif Saleh, morto há três anos, justo o mais jovem e o único sem ascendência germânica.

A propósito, não adianta procurá-los no Facebook, descrito como um instrumento diabólico que aproxima os distantes e separa os próximos. Cabe à confraria reforçar os laços de amizade e manter vivos os grandes fatos da História, ainda que se delicie mesmo é com os pequenos.

No dia em que falamos, lembranças cintilantes da loja de perfumes "Lá no Luhm", do pai de Harry, nos idos de 40, foram acompanhadas de descrições meticulosas dos atributos das vendedoras e inconfidências sobre compradores ilustres. "O perfume é de primeiríssima ou é para a sua senhora?", perguntavam as balconistas. Risos. Num estalo – emoção. Os Cotonetes adoram ouvir Harry contar da infância, quando borrifou "com bomba de flit" a colônia Flor de Maçã, de Helena Rubinstein, no recém-inaugurado Cine Luz. "Pô, vou ter de contar de novo?" Teve.

"Somos privilegiados", afirmam em coro. Com oito décadas nas costas, viram guerras, a corrida espacial, a pílula anticoncepcional, a minissaia e, como destaca Conrad, "a calcinha V8", assunto no qual fui reprovado. "De que se trata?", perguntei, alvejado por olhos incrédulos. "Que saudade da sopa húngara do Bar Paraná", desconversaram, gentis.

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