Sinto curiosidade em saber quantas pessoas tiveram suas vidas transformadas pela leitura do livro Os carbonários, de Alfredo Sirkis. Impossível, diriam. Mas teimo e sigo contando, um a um, rumo ao infinito. Esta semana foi a vez do paranaense Paulo Roberto Olszewski, 48 anos, 30 deles passados sob o impacto da obra que relata os bastidores da luta armada no Brasil.
É leitor apaixonado, desses que descrevem cenas inteiras e ainda se empolgam, como da primeira vez. Disputo com ele qual a passagem mais incrível, como se brigássemos por uma figurinha rara da bala Zequinha. Levo uma surra. Dez a zero. Para mim, Os carbonários é o texto que fez respeitar os jovens que enfrentaram a ditadura militar. Para ele, uma segunda certidão de nascimento. Explico.
Paulo então um jovem da colônia polonesa, vindo da pequena Borrazópolis, no Norte do Paraná virou do avesso ao terminar o relato. Tinha 21 anos. O livro ajudou-o a ler a própria vida. Descobriu o que queria dali em diante. De quebra, encontrou alguém a quem admirar: o capitão Carlos Lamarca, descrito com tintas fortes pelo autor Alfredo Sirkis, que convivera com o guerrilheiro num aparelho carioca. Dica: se você não leu, faça-o ao som da banda The Four Seasons. Comendo Goiabada Cascão.
No começo, a admiração pelo capitão era uma causa secreta, um segredo de guri, como aquele que nutrimos por Jesus, Lennon ou Gandhi. Dizia para si que um dia homenagearia o militar rebelado, assassinado pela repressão, fazendo a parte que lhe cabia em memória do homem morto. O dia chegou em 1991, quando Paulinho ator por formação, cabeleireiro por ofício abriu um salão de beleza na Vila Hauer.
Com a rapidez de quem faz um rabo de cavalo, batizou o estabelecimento de "La Marca" e não de "Lamarca", certo de que, com a grafia alterada, ninguém ia fazer a associação entre uma coisa e outra, a não ser que fosse um iniciado como ele. Danou-se. Mal entrou e um dos primeiros fregueses lhe bateu às costas, perguntando se dera de homenagear guerrilheiros e blablablá.
Deu no que deu: àquela altura da história os aparelhos tinham sido derrubados, os militantes mortos ou exilados, viera a Anistia, mas nada impediu que o cabeleireiro ganhasse um nome de guerra tardio "Paulinho Lamarca". Não perguntem no Hauer pelo Olszewski. Nem os parentes lembram de quem se trata. A mudança foi tão certeira que a turma do PT atuante no bairro indicou Paulinho para candidato a vereador desde que cravasse "Lamarca" nos santinhos. Encolhido, acatou. Fez bonito.
Suplente em duas eleições, chegou a conquistar 5 mil votos e a cumprir dois anos de mandato. Em 2004, rompeu com o Partido dos Trabalhadores e se tornou um militante em quarentena até segunda ordem. A fachada do salão ainda ostenta o letreiro "La Marca" e não falta quem atravesse a cidade para cortar a juba com o sujeito de fala contida e magreza de passarinho, sempre disposto a falar de política. Mas não lhe perguntem em que partido vai entrar. O anonimato lhe cai bem. Ficou até mais calmo.
"Faz tempo que não brigo", confidencia, ao lembrar do ímpeto juvenil, quando batia boca até com os fregueses ele com pente e tesoura nas mãos; eles com o cabelo em papas, debaixo de um avental apertado ao pescoço, não raro carregando no peito a logo com o nome que, 40 anos atrás, levaria todo mundo para o pau de arara: "La Marca".
Acha graça. Sente saudades da panfletagem e dos piquetes. Tem lá suas taquicardias ao ver tantos protestos varrendo o país, mas afirma que vai muito bem, obrigado. Cumpriu a jornada de herói, de volta à vida comum. Além do mais, "... tenho meu salão", defende-se. O "La Marca" não é o esconderijo de Paulinho, mas sua tribuna discreta. Ali discute os rumos da humanidade, apesar do som alto dos secadores e da tagarelice das clientes. Ali se mantém no posto de ator de teatro: em certo sentido, contracena com homens e mulheres de cabelo novo, personagens de si mesmos. Além do mais, a cada vez que atende o telefone e diz "Salão La Marca", dá-se por satisfeito: não traiu sua promessa de jovem carbonário. Eis o homem.