Esta é a história de um livro. Em 2011, a jornalista curitibana Rosirene Gemael concluiu sua pesquisa sobre a atriz Odelair Rodrigues (1935-2003) – dedicou-lhe uma biografia poética. Avisou do feito a duas amigas – a também jornalista Dinah Ribas Pinheiro e a produtora cultural Mônica Drummond. Depois se retirou para o que julgava uma estadia protocolar no hospital – andava às voltas com um problema de quadril. Não voltou mais.
Foram 50 dias de UTI. O desaparecimento enlutou a cidade. A bela, intensa e reservada Rosirene fazia parte de uma das primeiras gerações de mulheres que chegaram às redações paranaenses. Essa turma – à qual, a princípio, foram relegadas as seções de cartas, o horóscopo, as receitas de bolo, as rondas policiais, as baboseiras e o posto de bibelô – teve de penar para realizar um desejo: ser a seu tempo e modo continuadora da soberba jornalista italiana Oriana Fallaci, inspiradora de nove entre dez profissionais de imprensa dos anos 1960 e 1970.
Pois elas conseguiram, uma a uma. Rosirene, no caso, se tornou um marco da imprensa cultural do estado. Sua passagem pelo extinto Correio de Notícias merece apartes. A participação que teve na deliciosa revista LeitE QuentE – escreveu sobre a neve na capital – grita por uma reedição. Os exemplos vêm às pencas. Quando somava mais de 50 anos, tendo vivido muitas encarnações no circuito das artes, recaiu sobre ela uma tarefa para a qual estava talhada: biografar a atriz Lala Schneider e, por tabela, Odelair Rodrigues, das quais era fã desde os tempos de menina, ouvindo-as em novelas de rádio.
Cumpriu as tarefas, debaixo de anestésicos. A saúde tinha dado de lhe faltar. Por ironia, os dois trabalhos estão inéditos, cada um com sua própria tragédia. O de Lala ganhou uma edição tão estropiada que nunca foi distribuído, em respeito à maior personalidade do teatro paranaense. Jaz numa repartição, escondido até de si mesmo. O de Odelair é uma saga e merece seu lugar ao lado das crônicas dos originais perdidos em naufrágios, incêndios, ou os esquecidos em bancos de táxi. Aos fatos.
Rosirene fazia parte de uma das primeiras gerações de mulheres que chegaram às redações paranaenses
Ao salvar no computador a última versão do livro sobre Odelair, Rosirene – que não era lá uma candidata a operadora de helpdesk – deve ter dado um comando errado, aquele diabólico “deseja substituir...”. O documento virou fumaça, nunca foi encontrado, mas não restam dúvidas de que existiu. Tratava-se da palavra de Rosirene, para mais de uma pessoa. Nos backups, foram encontrados os capítulos em separado, com grifos, rubricas e anotações – algo como “conferir data no jornal O Estado do Paraná de janeiro de 1973”.
“Eu sou uma burocrata. Eu administro os conflitos. E agora?”, pensou Mônica Drummond ao descobrir que o texto de Rosirene sobre Odelair tinha se mudado para as nuvens, sem deixar endereço. Pela lógica das leis de incentivo, cabia a ela, uma expert em tabelas, custos e egos inflados, terminar o livro – sob ameaça de processo. Podia devolver o dinheiro. Publicar do jeito que estava. Ou tentar terminá-lo. Ficou com a terceira alternativa, o que foi mais do que uma decisão técnica. Amava Rosirene. Esteve apenas dois anos com a cliente – tempo breve no qual se tornaram amigas e confidentes de um século inteiro. A eficiente Mônica não se sentia capaz de concluir as frases de uma esteta do texto jornalístico – o que R.G. escrevia era tão potente que fazia os seus pares se sentirem vestibulandos cravados de espinhas. Restava a Drummond usar das armas que tinha.
Mônica Drummond é uma curitibana com sotaque carioca. Voltou para a cidade natal na adolescência, cursou Administração e quiseram os deuses que se empregasse na mítica agência de publicidade Umuarama – sim, a do Bamerindus. Começou fazendo clippings, terminou assessorando os diretores. Em 1997, quando se despediu da publicidade, sabia tudo sobre patrocínio cultural e se sentia apta para a centena de livros que estavam por vir com o seu selo de qualidade. Largou na pista com o projeto Lost Zweig, de Sylvio Back. Alcançou tamanha admiração no mercado que, faz pouco, decidiu se dar ao luxo de captar patrocínio apenas para propostas que lhe façam a cabeça.
Resiste aos assédios – não passa semana sem recusar convites de escritores, pintores, autores de ocasião. Pensar que anos atrás quase mandou para a lixeira o pedido de Rosirene, com a qual trocou faíscas ao telefone, até saber o nome da candidata a desfrutar de seus préstimos. Foi a única freguesa para a qual a produtora passou o número de casa. O papo delas era fervido e coado. Tamanha cumplicidade não poderia acabar aí. O livro sairia e pronto. O resto foi como transpor um Rio São Francisco inteiro, e contra a corrente.
Basta dizer que passaram pela costura da obra nada menos do que nove pessoas, cada uma com sua escala de timidez diante da tarefa: as amigas desde os tempos da faculdade – Adélia Maria Lopes e Dinah Ribas; o irmão Kiko Gemael e o filho Marco Gemael Libretti; a jornalista Michelle Müller, que folheou jornais para esclarecer as rubricas deixadas por Rosirene; a pesquisadora Selma Suely Teixeira – um coringa que tinha estudado a obra de Odelair; a publicitária Bia Rainer, a designer Adriana Alegria e, por fim, o jornalista Zeca Corrêa Leite. Ele venceu a maldição e alinhavou as frases perdidas da colega, quase sem deixar vestígios sobre onde acabava uma voz e onde começava outra. “É um concerto a quatro mãos”, resume Mônica. No laço de fita, uma dedicatória da atriz e poeta Yara Sarmento.
Em tempo. Passados quatro anos desde o arquivo perdido e os funerais de Rosirene Gemael, Odelair Rodrigues, o livro, está tinindo de lindo. Na ficha catalográfica, vai ganhar palavras-chave como “teatro paranaense” e “Odelair Rodrigues”. Bem mereciam constar ali termos como “afeto”, “lealdade”, “amizade” e “resistência cultural”, entre outras categorias que pouco interessam ao Banco Mundial. Só não chegou às mãos dos leitores porque esbarrou em questões burocráticas – Kafka é fichinha perto delas. Não merecem ser citadas – essa festa não lhes diz respeito.
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