Estou com um problema. As duas cachorras aqui de casa deram de demonstrar transtorno de comportamento. Andam bipolares, justo agora que as julgávamos adultas, aptas a assistir a Em família na sala com a gente. Procurei ajuda entre os conhecedores da psicologia animal, sem sucesso. Resta-me apelar. Aos fatos.

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Lola é rottweiler, mas uma rottweiler sem aquela ostentação das cantoras de funk. Faz o tipo mignon, com concentração de gordura nos quadris, que chacoalham para lá e para cá, nunca na cadência do samba. Seus movimentos se assemelham aos dos gaiteiros da Oktoberfest, prova de sua fidelidade canina às origens alemãs.

A guria, por exemplo, não senta, cai sentada, o que faz da clássica passada de pé na barriga não um pedido, mas uma ordem. É disciplinada. Às 22 horas em ponto passa a agir como uma síndica, tendo à fuça o estatuto do condomínio. Recolhe-se aos aposentos – na garagem – e dali não arreda o pelo nem se lhe acenarem um bife com gordurinha nas bordas. Chupa Skinner.

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A questão é que, à revelia do seu instinto de general, Lola deu de se entregar à passionalidade. Baixou-lhe a espanhola. Talvez seja um daqueles casos em que o nome faz a pessoa. Devíamos tê-la batizado de Frida, nunca de Lola, de modo a manter as rédeas de sua focinheira emocional. E a língua dentro da boca. Vive a nos lamber de forma compulsiva e com tamanha destreza que temo estar possuída. Rejeitada, ora amarga um olhar enigmático de Gioconda, ora se comporta como a "Fera da Penha", ganindo contra os que a amam.

Nina Maya, a Maya, se tornou um caso ainda mais cabeludo. Pertence à família dos são-bernardos. Sair com ela à rua é um verdadeiro Garibaldis e Sacis. "Olhe o Beethoven", latem adultos e crianças quando ela passa, esbanjando a difícil combinação de simpatia e beleza. Poucos resistem a seu frondoso casaco de pele, projetado para ser usado nos Alpes Suíços, nunca na Curitiba de quase 40 graus. Querem passar-lhe a mão. E o fazem sem pudores, mesmo nesse momento, quando está toda tosada, com a cara do mascote do dr. Evil, da série do Austin Powers.

A personalidade da Maya sempre me impressionou. Troca um prato de comida por carinho. Despreza convenções, se me entendem. Tem espírito livre. Perdi as contas de quantas vezes fugiu, portão afora, para além do horizonte da Avenida Getúlio Vargas. Dá-se aos chamegos de quem quer que passe, sem distinção de raça, sexo, cor e conta bancária. Numa das escapadas, nós a imaginávamos, soberana, julgando-se a Marquesa de Santos, mas carregada no topo de um carrinho de papel.

Até que veio a surpresa. Maya se parece, e muito, à personagem hippie do filme Flores partidas. Para quem ainda não viu, um homem (Bill Murray) sai atrás de suas ex-namoradas, para descobrir com qual teria tido um filho dele na juventude. De todas, para espanto, a pior, a mais tirana, a mais narcisista é a que Bill julgava ser a melhor, pois mora num acampamento, não depila as axilas, defende a natureza e todo o receituário que guardou no bolso da bata logo que Woodstock terminou.

Pois, amigos, a relação de poder e submissão entre as duas cadelas desafia a filosofia pet: a riponga são-bernardo Maya espanca a inconstante rottweiler Lola. Temos ocorrências todos os dias, sem motivo aparente, num desafio flagrante à hierarquia. Quando conto, ninguém acredita.

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Recorri ao livro O que se passa na cabeça dos cachorros, do endiabrado jornalista canadense Malcolm Gladwell. O texto traça um perfil do mexicano Cesar Millan, da série de tevê O Encantador de Cães, sujeito capaz de botar pitbull para tomar chá das cinco. A primeira impressão é de que se trata de um caso de paranormalidade, dom especial que eu julgava ser monopólio do meu vizinho Nelson Pudles. Mas não. Tem ciência nessa história.

Mais do que as outras espécies, os cachorros são apaixonados por humanos, e os estudam, o tempo todo – com exceção da Lola depois do expediente. A maneira como nos mexemos, como olhamos, a intensidade da nossa respiração – tudo funciona como um recado para o bicho, que usa esse banco de dados para nos manter na coleira.

Entristeci. Entendo agora por que nunca fui escolhido como dono por um cachorro: minha expressão corporal não lhes inspira confiança. Acham-me um banana. De modo que Maya e Lola não se incomodam em expor suas diferenças na minha frente, crentes de que não vou entender o que se passa na cabeça delas, no que estão com toda a razão. Vou juntar uma grana e marcar uma consulta com o Cesar Millan. Para mim.

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