| Foto: Foto: Marcelo Elias / Arte: Felipe Lima

O sanitarista Mário Stival, 65 anos, encerrou sua carreira de médico em 30 de junho último, na Unidade da Vila Camargo. Des­­pediu-se todo abraços e se mandou para casa, no Jardim das Amé­­ricas. Ali, pôs o jaleco branco para descansar em paz e o passado na balança. O saldo lhe agra­­da: "Eu melhorei com o tempo", admite o profissional de saúde adorado, salve, salve, nas plagas do Cajuru.

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O doutor não lembra nem o dia nem a hora em que fez as pa­­zes com o juramento de Hipó­­crates. Tudo indica que foi num daqueles expedientes em que há doentes saindo pela janela e falta pachorra para preencher protocolos. Enfezou-se. Queria fazer diferente. Aos fatos.

Mário soma 38 anos de serviços à medicina – 30 deles como "médico dos postinhos", nos quais ficou mais conhecido que o padre e o vereador. Pudera. Es­­tima-se ter feito 140 mil atendimentos só no emprego municipal, sem falar nas horas extras de corredor e de cantina.

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Aos hipertensos, diabéticos e hipocondríacos que passavam debaixo de suas vistas oferecia um prêmio: as orelhas. Não existem estatísticas oficiais, mas a gente espera uma hora por uma consulta de cinco minutos e ainda pede desculpa pelo incômodo. Com o doutor Mário, a turma muitas vezes passava 60 minutos na sala, delatando da malvada da ciática às infelicidades lá de casa.

Eis a razão de sua fúria. De­­pois de atender dona Da­­nuta ou o Miguel da venda, se embananava com os prontuários. "Eu não ti­­nha onde classificar as informações", conta o homem que sabia demais so­­bre os pacientes. Foi o que bastou para que tomasse iniciativas dignas de figurar nos programas de paz da ONU.

Num dia, Mário pu­­nha "vovozelos" com pres­­são alta a se exercitar em volta da quadra. Santo remédio. Noutro promovia al­­moço comunitário para mostrar que dava para viver sem pele de galinha e sem feijão com senzala e muito sal. "Receitar é fácil", diz ele, "difícil é mudar comportamentos".

No começo, meio Cajuru chiou. Até uma chefe partiu para dez. "Ô, Mário. Não dá para atender mais rápido, não?" A resposta veio curta e grossa. "Se fosse seu pai, quanto tempo eu deveria demorar?" A gestora se calou. E a turma se afeiçoou aos longos colóquios com o doutor.

Não à toa, sua saída pôs abaixo a Vila Camargo. Domingo ago­­ra vai ter até missa. É um tal de obrigado seguido de longas histórias. "O senhor lembra da minha hérnia?" Mário – à revelia do physique du rôle para Fred Flintstone – tem registrado um súbito descontrole das glândulas lacrimais.

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Num desses adeuses, bateu-lhe à porta uma mulher saída de uma tela de Portinari. "Minha mãe me fez jurar que eu ia agradecer o que o senhor fez por ela." A unidade virou um "Arquivo Con­­fi­­dencial" do Faus­­tão. Seria bom se Fioravante Stival visse aquilo.

Fioravante era italiano do Vê­­neto. Chegou ao Brasil em 1935, foragido dos humores de Mus­­solini e aqui virou chofer de praça. Aos passageiros anunciava: "Vou ter um filho cirurgião". O bam­­bino não teve como recusar – seu papá já corria São Paulo para lhe pagar as mensalidades da Católica, em Curitiba.

Mal sabia que o moço se en­­cantara pela saúde pública, contra todos os que lhe disseram que essa área não forrava o bolso de ninguém. A escolha se deu du­­rante um projeto social nos arrabaldes de Foz do Iguaçu. Foi lá que um radialista de nome To­­ni­­nho Barrigudo anunciou a chegada dos doutores. Eram estudantes ainda. Do que se sabe, um deles perdeu o rumo ao ver aquela gente tagarelando as próprias dores – todas elas. Virou o Má­­rio, aquele todo ouvidos.

Epílogo. O Plano B do doutor é estudar antropologia cultural. Sabe o que é – ao longo da carreira ele redigiu nada menos do que 2 mil laudas com aquelas histórias que não cabiam nos formulários. São sobre o bicho homem. Quer entendê-lo. A gente agradece.

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