| Foto: Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Numa das passagens de Cem anos de solidão , ao se referir à alucinada matriarca Úrsula Iguaran, Gabriel García Márquez escreve que, quando envelhecemos, lembramos mais da nossa infância do que do último desjejum. E que, quando envelhecemos muito, recordamos de coisas que nem sequer vivemos – as que nos foram contadas pelos mortos. A japonesa Tieko Sakamoto, 90 anos, moradora do Jardim das Américas, em Curitiba, não leu Márquez e o nome Úrsula mais parece ao de uma vizinha. Mesmo assim, concorda com o colombiano.

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De uns tempos para cá, deu de cantar milenares canções em japonês – tão longe de seus ouvidos e de sua memória como a dinastia Yamato. Mais – é capaz de traçar genealogias de um Japão ancestral, povoado de samurais dispostos a trespassar a espada no próprio umbigo; de mulheres tratadas como sobras de papel arroz; e de descrever com mesuras cenas do cotidiano em Sendai, de onde saiu aos 6 anos de idade.

Suas três lembranças nipônicas mais remotas são a de um caranguejo que lhe agarrou o pé, à beira de um riacho, sem largar. Gargalha. A outra é a de um homem misterioso, com o rosto protegido por um véu. Visitava-a às escondidas, trazendo frutas de presente. Prometia-lhe estudos e o céu. Tempos depois, soube que se chamava Mitsuo, que teve a face deformada numa tina de fundição de ferro e que era seu pai. Mesmo sem criá-la, ele lhe deu o nome de Tieko – “filha da sabedoria”, em bom japonês. Quanto à terceira – a terrível imagem de um bebê morto, embalado em lençol branco, jogado no mar, durante a viagem para o Brasil. “E se fosse eu?”

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Tieko não era propriamente dada a saudades. Criou seis filhos, a maioria deles em meio às roças de café

Tieko não era propriamente dada a saudades. Criou seis filhos, a maioria deles em meio às roças de café. Por décadas, preferiu os números, ocupando-se, inclusive, da estafante contabilidade de uma fazenda administrada por seu marido, Nishio. Mas a morte do companheiro (em 2004) e de um filho (em 2006) lhe atiçaram sentidos dormidos. Deprimiu-se, como há muito não acontecia, e aceitou os cadernos que lhe foram recomendados pela neta Márcia Shimizu, como terapia. “Escreva o que lembra...” No que obedeceu.

Traçou dois cadernos inteiros, com letra de normalista do Instituto de Educação, confirmando o que estudiosos como Frederick Bartlet e Maurice Halbachs disseram sobre a memória: é um desembestado brinquedinho de corda. De posse da caneta Bic, Tieko passava da infância na Fazenda São Joaquim, em Ribeirão Preto, para um Google Earth em Cornélio Procópio, no Paraná, sem escalas. À noite, sonhava com lugares que mal sabe achar no mapa. Depois entregou os originais a Márcia, que com a ajuda da escritora Aída Piccinin editou e colocou em ordem cronológica, dando por terminado um livro que merece estar em pelo menos duas coleções – a das obras assinadas por mulheres anônimas e a dos relatos da imigração japonesa. É edição pequena, não mais de mil exemplares.

De Tieko , o livro, pode-se dizer que lembra filmes como Clube da Felicidade e da Sorte, de Wayne Wang (OK, as gurias que se reúnem para seu we can do it são chinesas) e Bem-vindo ao paraíso, de Alan Parker. A parte em que trata da impagável avó Kimi, me permitam, é Akira Kurosawa na veia. No geral, não chega a ser romântico como Suplício de uma saudade – aquele em que Jennifer Jones quase convence na pele de japonesa –, mas que Love is a many splendored thing poderia ser a trilha sonora da narrativa, ah, podia.

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Sobretudo, Tieko é um acerto de contas com a escrita. À hipótese. A veterana ainda guarda a cartilha surrada das aulas de japonês (Hati no maki) – usada na escola rural na qual estudou, na década de 1930. E uma mágoa do dia em que, aos 11 anos, foi obrigada a trocar os estudos pela colheita, justo quando a professora Geni lhe ensinava a fazer o cabeçalho e lhe prometia que seria professora também.

Como estudar era o que mais amava, provou da tristeza, um seu segredo para sempre. Ao ver Márcia com os cadernos estendidos, foi como cruzar com uma paixão antiga, 80 anos depois. Daí seu apetite. Já lhe encomendaram um segundo volume de Tieko, mas anda ocupada demais com os romances que a neta compra em sebos, aos quais se entrega como se os olhos não ardessem. Esperou muito por isso, e nem sabia.

***

Tempos atrás, ao ver aquela senhorinha de cabelos brancos, bem posta dentro de um tailleur, bandidos a julgaram presa fácil para o conto do vigário. Sequestraram a Tieko. Ela, nem tchum. “Passeei bastante de carro com eles”, conta. Curtiu cada lance – em especial quando o bandido abriu uma maleta cheia de dólares para impressioná-la. Coitado. “Só tinha na parte de cima, né.” Pois desistiram da refém. E lá se foi pela rua, a japinha que plantava verduras à luz do luar, que pagava dívidas colhendo café; que comprava porquinhos com os vinténs que lhe deram uns parentes caloteiros. Eles, não mais. Ela viveu para contar. Não atrapalhem.

Tieko Sakamoto viveu todos os capítulos da imigração japonesa no Brasil: os terrores da longa viagem, os albergues, a exploração nas fazendas de café, a construção do próprio patrimônio. Em Curitiba, foi dona do tradicional Armazém Vila Rica, na Avenida Água Verde esquina com a Coronel Dulcídio.
“Adoro minha vida como está hoje”, diz a mulher que viveu para contar.
“Adoraria que meus tios lessem este livro, mas eles não estão mais aqui”, diz, ao lembrar os momentos difíceis em família. “Aprendi a perdoar”.
A neta Márcia Shimizu lhe deu dois cadernos, como terapia. E acordou na avó o talento adormecido para a escrita.
Memórias de Tieko passam pelos samurais e por um Japão ainda feudal: lutos atiçaram as lembranças da veterana.
Com a neta Márcia, com a qual tem grande ligação.
O livro “Tieko” foi editado ao longo de cinco anos. Lê-se como um testemunho da mulher japonesa e sua condição.
“”Passeei bastante no carro dos sequestradores”, diverte-se.