| Foto: Foto: Antonio More / Arte: Felipe Lima

Ainda hoje, tem quem sinta ganas ao ler o poema em prosa O mau vidraceiro, de Baudelaire, publicado em O spleen de Paris. Não sem razão. O poeta temperamental conta no texto que empurrou porta afora um consertador de vidraças. Não satisfeito, atira um vaso às costas do pobre, que cai no chão e espatifa a carga que lhe garante o pão de cada dia. O barulho, descreve, foi o de "um palácio de cristal arrebentado por um raio".

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Esse misto de faniquito com borderline causa de fato maus bofes. Já o que o motivou, bem, rende a melhor das conversas. Vejam só: o tal vidraceiro não tinha espelhos coloridos, capazes de tornar "a vida mais bela". Para Baudelaire, possuído pelas fleumas da Belle Époque, esse era um crime pior que bater na mãe. A cidade tinha de ser um cenário de luzes, adornada de vitrais, escadarias e jardins. Do contrário, não merecia esse nome.

Fico pensando se o velho "Baud" vivesse em 2014 e pedisse os préstimos de um calceteiro – similar do vidraceiro do século 19. Primeiro, precisaria explicar, "alô", que calceteiro é o profissional que faz calçadas. Depois, teria ele mesmo de se atirar ao chão, ao ser informado que, em vez do petit-pavé, os operários do ramo se dedicam a assentar horrendos pavers, que mal resistem ao peso de um caminhão de mudança. "Que tornem a vida bela", berraria o poeta em febres, antes de ser encaminhado ao hospício.

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Não tomem por exagero. Sem calçada boa, bonita e gostosa não há solução. Gente bamba é quem conta. A ativista norte-americana Jane Jacobs dedicou às calçadas mais de 90 páginas de seu clássico Morte e vida de grandes cidades. Quem se diz inseguro na metrópole, afirma Jacobs, na verdade está querendo dizer que "não se sente bem ao circular nas calçadas". Tacou-lhe pau.

Em A invenção do cotidiano, o pensador francês Michel de Certeau comparou o gesto de caminhar pelas calçadas ao ato de falar. Da mesma maneira que nos apropriamos das palavras, formando sentidos, o pedestre se apropria da rua, fazendo dela um lugar, na acepção mais poética do termo. Nem o guru do mundo virtual Steven Johnson resistiu aos encantos das calçadas. No livro Emergência, define-as como um magnífico sistema orgânico de inteligência, aprendizado e experiência, a exemplo, claro, da internet – a grande calçada onde passa todo mundo.

Tudo isso é para dizer que vocês iam adorar conhecer um sujeito chamado Valmir Jorge Gomes. Tem 58 anos, nasceu em Campo Largo e mora em Araucária. Seu pai fazia cantaria – tirava pedras das rochas para...? Gomes se tornou calceteiro. No início dos anos 1970, ainda adolescente, participou da empreitada que transformou a XV no Calçadão da Rua das Flores, o mais copiado do Brasil. Mas foi apenas uma década depois, ao fazer petit-pavé para um arquiteto português, que entendeu, digamos, o caráter baudelairiano de sua especialidade.

Ao ver o serviço pronto, o portuga – acostumado às pródigas calçadas lusitanas – chamou o calceteiro à mesa, serviu-lhe o melhor vinho e brindou: "O sinhoire é um artista". Gomes, que passou chispando pela escola e tem a pele lanhada de tanto quebrar pedra, viu-se, de repente, na ribalta. Não achava seu trabalho importante, quanto mais uma arte, alinhada à tradição de mestres calceteiros, seres iluminados que entendem as vontades das "pedrinhas portuguesas", essa coisinha bonitinha que seduz o pedestre que nos habita. Quem nega, é bobo.

Como em toda "arte de ofícios", os calceteiros de estirpe são dados a liturgias. Gomes não foge à regra. Diz: 1) A melhor pedra é a que vem da rocha profunda. Deve ser cortada, nunca quebrada; 2) É preciso sentir o caimento do terreno; 3) Cada pedra tem um lugar destinado para si. O bom calceteiro sabe o que a pedra diz. "A sabedoria do calceteiro está nas mãos, não nos olhos"; 4) O martelo com o qual se soca a pedra segue um ritmo. Não se interrompe o calceteiro nessa hora: ele está fazendo música, que depois será sentida pelos pés de quem anda.

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Ah! Nosso mestre não conhece Baudelaire e os outros, embora tenha se tornado leitor assim que se entendeu como um artista. Entre seus livros preferidos estão Elogio da loucura, de Erasmo de Roterdã; O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry; todos os do Laurentino Gomes. Tem a ver. No mais, avisa que anda às voltas com uma baita dor nas costas. Que nunca acaba as obras de sua casa. E que, quando um freguês acha que o que faz é tapar buraco, inventa que anda ocupado. E sai para pescar. Sem beleza, não tem negócio.

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