Acredita-se que o poeta Carlos Drummond de Andrade teria dito (melhor colocar em dúvida) a seguinte frase: “Quem escreve para jornal não tem namorada”. A dita circula na internet, ao lado de umas tantas, de procedência duvidosa, atribuídas a Clarice Lispector ou a Goethe, para citar dois. Escritos aprócrifos à parte, que a frase é boa, é. Pelo menos para quem circula nos labirintos da imprensa.
Explico. Para cronistas – caso do Drummond, que exerceu o ofício de forma bissexta –, repórteres e editores em geral, a relação com os leitores costuma ser tensa. Um “pé”, como se dizia. O leitor reclama sem muito tato – e, em geral, com todas as forças dos calcanhares – qualquer mínima distração do escriba, seja o acento perdido ou a concordância esquecida, barbeiragens afins. Às vezes, porta-se com tamanha virulência que nos faz sentir parte de uma das cenas do besteirol Top Gang, em que um personagem – acossado – joga querosene no corpo e acende um fósforo, para ver se, ao se comportar como um monge indiano em protesto, consegue o perdão pelo erro cometido. “Tá bom assim?” Não se iludam – nenhum castigo basta para o algoz.
Diante desses consumidores hábeis na arte do desaforo e da humilhação, todo jornalista atingido recorre, em consolo, à frase de Drummond – “essa gente não tem namorada”. Não há registros conhecidos nos anais da imprensa – apenas nos bastidores –, mas leitores e repórteres, centenas de milhares de vezes, foram às vias de fato com seus detratores de boca-suja. Quebraram o pau, à revelia das regras corporativas que monitoram até o tom da voz que se deve usar para dizer bom dia ao cliente.
Em quase três décadas de lides, não fujo à regra. Tive meus cinco minutos taurinos uma meia dúzia de vezes, assim que ouvi a primeira deixa dada pelo “leitor abusador”: “Escute aqui, jornalistazinho” (o diminutivo evoca tanto o salário quanto o fato de que repórter não faz uso indébito do título de “doutor”, a exemplo dos médicos, advogados e alguns engenheiros mais assanhados). Outra senha comum é “me passe para o seu superior”.
Um dos segredos mais bem guardados é a ausência de estudos sobre como funciona a cabeça dos leitores de jornal
A palavra “superior” traz implícita a expressão “subalterno”, que funciona como uma faca no peito de quem abraçou uma profissão horizontal como o jornalismo, na qual não há nenhum grande fosso de competência entre um publisher e um repórter de “geral”. O poder maior, aliás, é de quem está na rua, pondo a perder a sola dos seus sapatos. Pois em miúdos, perdi as estribeiras com quem pediu para falar com o superior e com os que fizeram voz de caquinha para falar da minha profissão. Foram poucas – e confesso que não me orgulho de nenhuma delas. Brigar com o leitor – ainda que alguns poucos deles pertençam à categoria de desaforado desalmado – é um solene fracasso.
A primeira vez que ouvi falar do leitor como uma figura merecedora de todo o afeto não foi pela voz de um jornalista, mas por meio de uma pesquisadora da área de Letras, a professora Marta Morais da Costa, da UFPR. Faz uma pá de tempo, mas, como diz a poeta mineira Adélia Prado, “o que a memória ama fica eterno”. Deu-se naquele dia a revelação das coisas simples da vida. É preciso interpretar “o que o leitor diz com aquilo que fala”, captou? Deve-se considerar, do mesmo modo, que nenhum texto existe sem os seus leitores. Que o carinho por quem bate o olho nas palavras que escrevemos tem de ser incondicional. Bem ou mal, são sempre encontros marcados. Por aí vai.
Do ponto de vista pragmático, as lições dadas pela professora Marta – azeitadas em teóricos como Iser, Jauss e Eco e tal – se converteram no hábito de contar até três antes de soltar os cachorros, assim que a gente se sente injustiçado por sua excelência, o leitor. O sujeito do lado de lá do telefone afia os caninos porque acredita que o que está do lado de cá passa o esmeril nas garras, pronto para esfolá-lo. Pois esperar que a ansiedade abaixe é sábia medida. Arrisco dizer que em 90% dos casos em que o leitor se mostra indócil está em atitude defensiva – não raro provocado por uma espécie de carência afetiva de ordem intelectual. Ao reclamar de um texto, está contando, com sinais de fumaça, que, ora, importa-se com o conteúdo – e que não pode tolerar que nem mesmo o autor compreenda isso. Em vias de ser atacado, ataca antes.
De modo que, cambiada a atitude, com o tempo muitos leitores emputecidos se tornaram amigos sem igual. Um dos símbolos dessa fúria vertida em afeto foi seu Arno, um veterano. Ele ligava para reclamar das palavras cruzadas repetidas. Queria saber por que diabos ninguém conferia o jogo que tinha sido publicado nos dias anteriores. “Venha nos visitar aqui na redação. Quem sabe consigo explicar.” Veio – com uma barra de chocolate de presente. Não engoliu minhas desculpas esfarrapadas. Mas nos fez companhia no cafezinho e pediu para conhecer a colega Marleth Silva, de quem era seguidor. De quebra, fez a gente entender o que as cruzadinhas significavam para um aposentado – essa categoria com extinção anunciada.
Um dos segredos mais bem guardados é a ausência de estudos sobre como funciona a cabeça dos leitores de jornal. Mesmo havendo alguns bambas no assunto – a exemplo do jornalista e historiador norte-americano Robert Darnton –, falta munição para decifrar homens e mulheres que se agarram à edição do dia. Demos bobeira nesse quesito, eu diria. Deve-se citar exceções, como os estudos de Letícia Nunes de Moraes sobre os leitores da revista Realidade. O trabalho da pesquisadora Gislene Silva, sobre o imaginário rural dos leitores urbanos. Citações que surgem aqui e ali em livros como Um homem chamado Maria, de Joaquim Ferreira dos Santos, a propósito do período em que o marco da imprensa sessentista, Antonio Maria, respondia com criatividade e deboche as cartas de leitores no Última Hora, Diário da Noite e O Jornal. Um luxo – para ambos.
Penso que a imprensa gastou muita energia acendendo vela para defunto ruim – no caso, ao alimentar rusgas adolescentes com seus leitores vociferantes. O resultado é pouco a dar para quem importa: o sujeito que abre um jornal ou uma revista, para ter com ela. Como acumulou pouco de interessante a dizer sobre quem lhe dá existência, publicitários e congêneres se encarregaram de fazê-lo, encaixando o leitor de jornal na categoria consumidor de notícia. Nessa lógica, catar mantimentos na gôndola de um supermercado e debulhar a editoria de economia são a mesma coisa. Negativo – ler é um processo cultural que implica em raspar umas três camadas de pele. Aprendi isso nos livros, mas também com o Dílson, com a Guilhermina, com uma pá de leitores com quem tive a sorte de conversar. São habitantes de um mundo espetacular – mesmo quando se perdem nas flatulências das redes sociais.
Em tempo. A Gazeta do Povo começou a publicar cartas de leitores no ano de 1963. As mensagens chegavam pelo correio ou eram entregues na portaria. Vinham assinadas por “uma certa Maria do Santa Quitéria” ou pelo “João da Barreirinha”. Os poucos registros que sobraram informam que pediam que fosse fechado o buraco de uma rua, que os ônibus tivessem horário certo para passar. Pediam, no fundo, que a imprensa reconciliasse a cidade com seus moradores. Bonito.
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