Ando com ganas de escrever uma carta para a Maria Bethânia. Besta que sou, quero lhe dar uma sugestão que grave um disco com o cancioneiro dedicado a Nossa Senhora Aparecida. Boto fé que iria para as paradas. Lembro, certa feita, de vê-la na televisão fazendo solo no coro da igreja de Santo Amaro da Purificação, numa das muitas bodas de dona Canô. Bethânia manda bem nos palcos, mas tenho para mim que nasceu para puxar o canto no altar.
Anos depois da palhinha na matriz, para minha surpresa, Bethânia gravou Cânticos, preces. Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu (2000). Cheguei a pensar em transmissão de pensamento. Me esfolei atrás do CD feito um romeiro do Círio de Nazaré. Mas não encontrei lá aquelas músicas que o povaréu esgoela nos cerimoniais de 12 de outubro. São canções ufanísticas, sob medida para cantar em procissão, debaixo do Cruzeiro do Sul, a nos fazer brasileirinhos. "Viva Mãe de Deus e nossa... ó Senhora Aparecida."
Essa fixação no hinário da Virgem Negra, juro, nada tem a ver com carolice. Como dizia aquela musiquinha do programa de calouros do Sílvio Santos, a santinha "é coisa nossa". Do contrário, não há como explicar sua onipresença nas fachadas das lojas, dando nome às avenidas, batizando nossas meninas. No Brasil, toda mulher é meio Carmen Miranda, é meio Leila Diniz, mas também é meio Conceição da Aparecida salvas das águas e milagreiras a granel.
Lembro das Cidinhas que conheci e amei. Várias delas são também Marias. Outras carregam Aparecida no segundo nome, quase sem lembrar que são Cidas na vida. De que me recordo, de todas ouvi a mesma ladainha: "Minha mãe era devota e..." Ser Aparecida é carregar a dívida de alguma promessa pode ser por gravidez complicada ou, sei lá, porque a família devia na mercearia. Ninguém é Cida de graça, presumo.
Fiz uma lista. A primeira das minhas Cidas é a Figueiredo, a sábia. Paulistana, quatrocentona, ex-bailarina clássica, ex-freira, óculos fundos de garrafa, cabelos prateados e uma pele tão branquinha que eu me distraía tuitando o mapa de suas rugas. Achava a Cida uma entidade e foi ela, num dia em que me vi em farrapos, quem me deu um livro: Um sentido para a vida, de Victor Frankl. Nunca mais nos vimos. Mas a Cida aparece sempre que meus dedos passam pelo Frankl na estante. Leio a dedicatória em letra miudinha. Ainda faz sentido.
Minha segunda Cida é da Silva, a boa. Negra, empobrecida e evangélica, cuidava da limpeza do jornal. Custou a me dar trela. Mas fomos unidos por uma televisão. Na sala em que eu trabalhava havia um aparelho. Como lhe era proibido por preceito, ela começou a se demorar por ali um pouco mais, um olho no aspirador de pó, outro no Vale a Pena Ver de Novo. Cida falava quase nada. Era desse modo que se dava aos outros em pequenas aparições nas quais repassava em gotas os mares que atravessou.
Foi assim, nos intervalos comerciais, que descobri por que vendeu a televisão e virou crente. "Eu levantava para fumar no meio da noite. O pastor me livrou disso", dizia. Logo suspeitei quais eram os sofrimentos da Cida envolta em fumaça e insônia. Nunca mais a vi e rezo para que me apareça, com a voz entre dentes. Nesse dia, veremos novela, falaremos pouco e diremos tudo.
A terceira Cida é a Demarchi, a bela. Vendia artesanato no Largo da Ordem, cursava Ciências Sociais na UFPR e tirava uns trocos posando para os alunos da Belas Artes, o que a habilitava para o posto de musa. Nunca houve modelo tão culta enquanto a desenhávamos em lápis carvão, discorria sobre Max Weber. Suspeito que se contássemos que Cida tinha forma e conteúdo, poucos acreditariam.
Uma noite ela ao centro, falando, os alunos em volta, desenhando, fomos flagrados por um segurança. Nervoso com a aparição da Cida desnuda, trancou-nos na sala e desembestou feito doido pelos corredores. Rimos como pagãos. Anos depois, Cida me apareceu na Rua Pedro Ivo: os mesmos cabelos indomáveis, as saias ripongas. Não falou de sociologia, mas de amores e milagres. Sumiu na Barão, rumo à Marechal. Alguém a viu?
Por ela, pelas outras e pela Virgem, dei de sonhar com Bethânia às Cidas a cantar.