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José Carlos Fernandes

Precisamos falar sobre isso

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Assim como você, o seu Tico da mercearia e a dona Cida da farmácia, me sinto apavorado pela onda de crimes requintados que assaltam o país. O estupro em série da turista americana no Rio de Janeiro, a dentista queimada viva em São Bernardo do Campo, e tudo mais, nos coloca numa bolha de silêncio e dor. Pior – a criminalidade sem dó faz com que nos sintamos verdadeiros patetas, o que lhe dá vitória por nocaute. É mal.

Comecei a me interessar pelos efeitos colaterais da violência há coisa de seis anos. Queria saber como o leitor reagia ao noticiário policial. Machadadas na sogra, tiroteios no parque infantil, maridos sanguinários, marginais que parecem saídos de um filme ruim são sempre garantia de que uma matéria será a mais lida do dia. Mas para minha surpresa são as que menos geram cartas do público.

Não vem ao caso aqui cansá-los com as chamadas "variantes da pesquisa", mas posso adiantar que, tudo indica, as pessoas tendem a se manifestar sobre situações que sabem modificar. E a fechar o bico diante do que as torna impotentes. No máximo, pedem mais cadeias, mais policiais, mais câmeras e a redução da maioridade penal, pois é tudo o que conseguem dizer diante de um problema que lhes escorre pelos dedos. O mundo do crime ficou sofisticado demais para nossa cabeça.

Resisto em acreditar que a crueldade é a sombra da nossa cordialidade, como insistem muitos estudiosos de comportamento. Taurinamente, prefiro insistir que a violência se tornou o desconhecido e o único remédio, mesmo que doa, é entender como ela funciona. Para tanto, teria de ser tratada com alguma ciência na escola, nos sermões dos padres, nos meios de comunicação, nas conversas amiúde.

Chega a ser curioso. Há mais de um século os brasileiros provam do prato apimentado da violência – e o devoram com prazer adolescente. Ao lado dos EUA, somos o país em que a crônica policial tem mais tradição. Um dos marcos teria sido o "bota abaixo", como ficou sendo chamada a urbanização do Rio promovida por Pereira Passos. Os cortiços foram demolidos, os miseráveis pilhados nos morros, a nova burguesia instalada perto do mar. Ricos e pobres ficaram muito próximos, o que ajudou na contratação de empregados domésticos, mas reforçou a desconfiança medieval que ronda os deserdados.

Resultado: de roubos de galinha a sumiço de roupas no varal, tudo se noticiava, em tom de folhetim. O ladrão era visto como alguém com falha de caráter, quando não um mal-agradecido. Se o delito ia além da conta, ganhava o rótulo de bestialidade. Impossível não citar o livro Crimes à moda antiga, de Valêncio Xavier. Episódios como a "noiva manchada de sangue" e o "crime da mala", ocorridos nos anos 1900 – ambos de grande comoção popular – soam como ficção, logo, nada que impedisse Clotildes e Teresas de irem à soirée. Foi assim por muito tempo.

Se me permitem, qualquer pessoa mais vivida já acompanhou um assassinato bárbaro qual um romance. Nos anos 1970, meu pai tinha banca de revistas e lembro, guri, de ler tudo sobre os casos Araceli, Ângela Diniz, Cláudia Lessin Rodrigues. Sou capaz de descrever esses fatos como se os tivesse visto. Alguns se deram antes de eu nascer. Não há turma de alunos para as quais não conte a morte da estudante Aída Curi, em 1958, e da maneira como o repórter David Nasser explorou o fato sem pudores.

Fico pensando em que momento os crimes deixaram de ser um ponto na curva, roubando em definitivo nossa inocência. Meses atrás, relendo Um homem chamado Maria, biografia do jornalista Antônio Maria escrita por Joaquim Ferreira dos Santos, me chamou atenção o relato de que o repórter procurava matéria-prima para suas crônicas ouvindo gente na sala de espera das delegacias. As histórias lhe pareciam hilárias. Até que se entristeceu. Cada vez encontrava menos casais que trocavam catiripapos por ciúme e mais histórias de tirar o sono.

Em minhas fantasias, admito, já me imaginei dando uma de David Grann, o jornalista norte-americano que faz soberbos relatos literários sobre assassinatos célebres em seu país. Assunto não falta. De quebra, voltaria a ser o menino que chorou cada tiro dado na "Pantera de Minas". Especularia cada cena. Ajudaria o público a fazer a tal da catarse, a entender o sentido da tragédia. Sem chance. Estamos todos feitos Antônio Maria na delegacia – sem graça nenhuma, pedindo colo.

Alguém pode acender a luz, por favor?

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