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Não lembro ao certo quando me dei conta de que é possível contar a história de qualquer coisa. Arrisco que tenha sido na década de 1990, ao ler um livro sobre a origem da conversa, do francês Theodore Zeldin. Até então, achava que as pessoas batiam papo, sei lá, desde os tempos de Adão e Eva. Se faltasse assunto, falavam do caráter civilizatório da folha da parreira e das virtudes nutricionais das maçãs. Pois eu estava errado.

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Outras pequenas histórias – que não as das batalhas e as dos heróis – foram se impondo ao repertório. No ofício de jornalista, inclusive. Certa feita, tive de escrever sobre a história do penico, muito instrutiva, aliás, em se tratando de um objeto que passou séculos debaixo da cama, desprezado, apesar de ser o mais democrático dos utensílios: deixava de cócoras pobres e nobres, tolos e sábios, sem distinção. O penico nos dá consciência da condição humana. Observe.

Passar dessas micro-histórias para as nossas próprias miudezas foi um pulo. E uma lenha. Há primaveras tantas, tenho de pelejar para convencer as pessoas a me contar suas trajetórias de leitores – questão que me interessa do prisma acadêmico. "Para quê?", perguntam os interpelados, alguns tons acima, em vias de me atirar um livro na testa. Respondo que, da mesma maneira que papagueiam suas crônicas familiares, suas paixões, as viagens e o que significam todos aqueles carimbos na carteira de trabalho, podem biografar o que leram. Como leitor de raça não nega fogo, rendem-se.

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Em 2015, se o vento ajudar, gostaria de investigar também o riso. É um projeto que já cheira a guardado. A ideia é perguntar a homens e mulheres de boa vontade quem lhes ensinou a rir – e informo de antemão que não há demérito que tenha sido na revista Seleções do Reader’s Digest ou assistindo às sitcoms. Não vai ser bolinho convencê-los de que a história do riso é quase tão importante quanto a Queda da Bastilha. Vou ter de recorrer ao papa Francisco, que acaba de reclamar do semblante fúnebre de seus pares do Vaticano.

Suspeito que aprendi a gargalhar com o tio Juvenal, que em festas de família rezava uma divertida missa pagã nas catacumbas da cozinha da casa de minha avó. Rolávamos no piso, bobos alegres. Também com tio José, "piadista militante", um Ronald Golias anônimo do bairro Novo Mundo, astro dos stand ups sem saber. Sua especialidade era imaginar diante do quadro da Santa Ceia o que cada discípulo estaria dizendo a Jesus. "Conta de novo, Zé", ouviu, anos a fio, da sobrinhada selvagem e pentelha.

Caso alguém se irrite e queira saber "por que diabos o riso interessa?", só me resta lembrar que o ponto principia na hora em que alguém emitiu o primeiro quá-quará-quaquá nas Grutas de Lascaux. E que somos feitos dos livros, empregos, conversas fiadas e das risadas que demos na vida. Rendam-se. A favor desse argumento, a lista de bambas que se ocuparam de entender a risada. Passa por Nietzsche e Erasmo de Roterdã, uma loucura. Confira elenco completo de pensadores em História do riso e do escárnio, de Georges Minois.

Quase completo. Minois não cita a voluptuosa Jessica Rabbit explicando por que ama o tresloucado leporídeo Roger Rabbit: "Por que ele me faz rir", responde a pin-up, aos muxoxos. Também não contempla o crítico britânico Christopher Hitchens, que botou pimenta malagueta nessa prosa. Ele associou riso à inteligência – e diz que os homens tomaram a prerrogativa de ser engraçados para si, sonegando esse direito às mulheres. Hitchens não conheceu a Tatá Werneck nem a Fernanda Torres, mas o raciocínio faz sentido.

A propósito, embora a maioria não passe um dia sem rir, escreveu-se pouco a respeito. O lugar tímido ocupado pelo humor e a felicidade no campo intelectual talvez se deva ao desaparecimento do livro da comédia, de Aristóteles, como me explicou uma vez a escritora, cineasta e engraçada Regina Rheda. No dia em que encontrarem o volume perdido, um filme desses de rir vai ganhar o Oscar, encerrando a maldição.

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Em se tratando do Brasil, a falta de matéria-prima sobre a questão soa mais estranha ainda. Somos conhecidos por viver mostrando os dentes – apesar da teimosia de escondê-los em 2014, o ano em que nos levamos muito a sério. O educador Rubem Alves dizia que quem não sabe rir – inquisidor – prepara fogueiras para os outros. Não era voz solitária nessa causa. O escritor Amós Oz – judeu, logo mestre na arte do humor contra a barbárie – associa a incapacidade de rir à tirania. Tiranos não se colocam no lugar dos outros, logo não riem juntos. Não se imaginam sentados num penico. E, se imaginam, não veem a menor graça. É de direito, mas não sabem o que estão perdendo.