Alguém diria que a Vila Nossa Senhora da Luz, na CIC, é uma Cohab do tempo dos dinossauros. Fundada em 1966, época em que Gordinis enchiam de graça uma Curitiba forrada de paralelepípedos, ganhou fama por ser o primeiro conjunto habitacional do Paraná, uma proeza urbanística de janelinhas coloridas. Tem 13 praças, ruas estreitíssimas, 10 mil moradores e 2,1 mil casas, parte delas com sótão de madeira, iguais aos das nonnas. Quase um conto de fadas, como se fosse possível.
Mas sobrou pouco desde o dia em que o marechal Castelo Branco o presidente sem pescoço cortou a fita de inauguração. A vila diferente das casas iguais passou por umas tantas eras geológicas, algumas boas, outras nem tanto. Virou pátria de seu João Marrão, bastião moral da redondeza. Posto de trabalho de Evinha do Pó. Endereço da bela Isadora Ribeiro, ela mesma. Terra santa do virtuoso frei Miguel Bottacin.
A vila pode ser chamada de tudo, menos de um subúrbio sonolento com cadeiras na calçada. Quem dá um rolê por lá saca logo. Vê a Unidade Paraná Seguro (UPS), instalada num contêiner. Dá nos nervos. Tem crime, mas também tem poesia. Num canto da Praça Central, um felliniano morador de rua ergueu sua lona num canto do jardim. Todos os dias ele escreve com giz um verso na pista de cooper. Bonito. Tem também um Farol do Saber que mereceria um prêmio da ONU, no mínimo.
O finado editor Otaviano de Fiore visionário que na década de 1970 povoou as banquinhas de revistas com enciclopédias em fascículos dizia que os faróis curitibanos tiraram o livro da sala escura, fazendo da leitura um monumento na praça. "Você mora antes ou depois do farol?", perguntamos volta e meia. Em se tratando do "Farol da Vila", deve-se falar algo mais.
Sabe-se que as bibliotecas são um inibidor da violência. A quem duvida, recomenda-se que se inteire sobre Bogotá, que chegou a ser o lugar mais sanguinolento do planeta. Ficou nesse posto inglório até ganhar soberbas bibliotecas, ligadas por ciclovias e centros de convivência. Pois é. O "Farol da Vila" é uma pulga perto dos empreendimentos colombianos. Soma 88 metros quadrados e 9 mil livros. Mas, mesmo uma tica, a biblioteca tem o poder de projetar essa Cohab cansada de guerra para além das manchetes policiais.
"Olhe, sou sincera. Você disse que adorou O mundo de Sofia. Que porre... Eu não passei da página 5", confessa uma frequentadora à agente de leitura Maria Aparecida Nascimento (foto). Conta de seus maus bofes com a espontaneidade de quem tira roupas do varal. A biblioteca da vila é assim um espaço em que os frequentadores não se sentem inibidos. Quem vai até lá não faz luxo, sente-se em casa. As agentes entenderam que tinha de ser íntimo e pessoal, ou seria nada. Biblioteca na praça precisa ter um quê de quintal. E sarau, à noite.
Maria Aparecida é uma das três Marias que atuam no Farol da Vila. Tem a Maria do Carmo Cherubim e a Maria Helena Teixeira, além da Ana Costa e da Mercedes Sanguinetti. Some-se os simpatizantes, como a pedagoga Débora Gabardo. Ela saiu de lá depois de 12 anos de serviços prestados inclusive como bruxa nas contações de histórias , mas não larga o osso. "Olhe, mãe, ela é minha professora de livros", gritou uma guria ao vê-la no mercado, dia desses. Deu pulinhos de alegria.
Quanto aos leitores, são conhecidos pelo nome. Alguns deles, também pela performance. A zeladora Dalva do Carmo leu 532 livros em cinco anos e meio um recorde. "Eu era solitária antes de descobrir o Farol", declara. Some-se o guri Daniel Cavalheiro, 11 anos; o líder comunitário José Ney, o Faísca, seu Geraldo, seu Francisco e seu Nelson, com quem as Marias conversam sobre literatura a boa, a meia-sola e a péssima, sem distinções. Fiz o test drive discuti com a mulherada a traição de Capitu. Upalelê.
Cida é a veterana do grupo. Planejou que encerraria a carreira numa biblioteca lugar que jurava ser menos atraente do que a ata da Câmara Municipal. Estranhou ao ouvir o primeiro "oi, vizinha" dado pelas moradoras que de manhã enfiam o nariz na porta. Depois vieram os intelectuais, dados à leitura de alto calibre. As crianças que lhe pediam um livro, mas também um abraço. Um deles saiu com a pergunta: "Mas como pode ser um farol se na vila não tem mar?". Uma bala para quem adivinhar a resposta.
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