| Foto: Arte: Felipe Lima

Há pouco mais de um ano, ganhei um desses livros de sebo que fazem a gente se sentir, sei lá, um aprendiz da Escola de Feitiçaria de Hogwarts. É de 1935 e se chama Sempre é tempo, de autoria do calígrafo Antônio de Franco. Não vendo nem empresto, aviso. Quem me presenteou foi Átila Borges, desbravador da tevê no Paraná e um dos idealizadores do programa Entre nuvens e estrelas, alegria da gurizada que na década de 60 sonhava ser astronauta ou aviador.

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Mal folheei e lembrei-me de Valêncio Xavier, com uma lágrima. Se vivo estivesse, o escritor de O mez da grippe – amante dos alfarrábios – me torturaria para que lhe rifasse a obra, agregando-a a sua impagável biblioteca de estranhezas. É de fato um achado.

Antônio de Franco – do qual nada sei – inventou 14 aparelhinhos para corrigir a postura de dedos, braços e até das pernas de estudantes com dificuldades em alcançar uma bela caligrafia. Para atestar a eficiência do método, o próprio autor se deixou fotografar no uso de talas, hastes e molas que poriam fim aos garranchos – pelo que indica no prefácio, uma praga no Brasil dos anos 30.

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O trabalho é dotado de um cientificismo atroz. Informa que para a letra "correr" a cabeça precisa inclinar a um ângulo de 15 graus. Experimente. Ao mesmo tempo, o anular deve ficar curvado por baixo do médio, "distanciando-se dois centímetros da ponta do indicador, sustentando o peso da mão". Nem o mínimo e o polegar escapam aos rigores da caneta tinteiro.

Até ontem, eu imaginaria alguém usando traquitanas feito essas, no máximo, em um daqueles filmes do expressionismo alemão. Mas depois das últimas, suspeito que Sempre é tempo corre o risco de ser reeditado e de se tornar um best-seller internacional. Explico.

Pipocou na imprensa que os EUA estão abolindo as aulas de Caligrafia, priorizando desde cedo o computador. Caso a sandice ianque se torne uma tendência planetária, vem por aí uma geração que não saberá escrever à mão. Se assim for, as lições do professor Franco serão preciosas.

Graças a esse brasileiro, milhares de analfabetos manuais aprenderão a fazer perninhas no "a", redescobrindo as delícias da letra cursiva. De quebra, o país há de se projetar num ramo ainda pouco explorado, o das próteses caligráficas à base de titânio, deixando para outrem patentes menos engrandecedoras. É o caso dos bumbuns bem fornidos, apontados como a maior contribuição nacional à cultura. Sugiro deixar essa honra para a plebeia britânica Pippa.

Confesso que essa conversa toda me deu uma nostalgia dos diabos. Lembro da tia Edil – por onde andará? – pondo os alunos ao lápis para explorar as três linhas mestras do caderno de caligrafia. Até hoje luto com o "d" tão feioso quanto meu dedo aleijado dos pés. Ambos têm vida própria, feito cabelos encarapinhados.

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Dirão que essa conversa tem cheiro de naftalina, eu sei. Mas ainda me extasio diante de uma letra cheia de personalidade, sempre motivo para um elogio e um papo. A propósito, uma das histórias de caligrafia que mais me comovem está num dos livros que amo – Os carbonários, no qual Alfredo Sirkis narra suas memórias durante a ditadura militar.

Um guerrilheiro, sabe-se, não conhecia a identidade do outro. Em caso de tortura, não alcaguetaria. Mas Sirkis, ao flagrar um companheiro de alcova alinhavando uma carta à namorada, não teve dúvida de quem se tratava: era o capitão Carlos Lamarca, cuja letra, "linda como a de uma normalista", virou uma lenda da luta armada.

Por um minuto me peguei fantasiando se Lamarca não teria passado pela escola do professor Franco. Ali, atado aos espartilhos da caligrafia, alimentou seus desejos de revolução. Na tal carta – dirigida a sua amada Iara Iavelberg – quem sabe escreveu: "Um dia, cada um dirá de punho, em linhas firmes e claras, o que somos e a que viemos." Aiai, Sempre é tempo mexeu comigo.

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