| Foto: Foto: Aniele Nascimento

Há pouco mais de uma década, a artista plástica Estela Sandrini ga­­nhou em partilha a biblioteca que pertenceu a seu pai, o jornalista José Ernesto Eri­­chsen Pereira, o Jeep, como di­­ziam. Fez o que qualquer herdeira faria: sacudiu a poeira e farejou o tesouro até se convencer que lhe era de direito. Eis o que se deu.Enquanto folheava, viu-se diante de um testamento: estava sendo apresentada ao homem que jurava conhecer. Jeep tinha guardado suas verdades nos títulos que comprou, nos assuntos que amou, nas frases deitadas nas marginálias – essa expressão bandida que define o mais delicado dos crimes, o crime de escrever nas bordas dos livros aquilo que pensamos.

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Erichsen morreu aos 55 anos, em 1964, quando o golpe militar ainda cheirava à pólvora. Não passou ileso pela quartelada. Em­­bora nas últimas, fazia parte de uma lista de prováveis presos políticos. Riu ao se imaginar mo­­ribundo, de pijama e sonda atrás das grades. Depois descansou em paz, sem perder o humor jamais.

Àquela época, Estela, ou Teca, a mais moça das quatro filhas do jornalista, estudava na Belas Ar­­tes e vivia dividida entre ir à passeata, ser pintora ou sair para namorar. Sabia da importância do pai – afinal ele tinha trabalhado em jornais como Diário da Tarde, O Dia e O Estado do Paraná, mas mal podia imaginar que fosse leitor de tantas letras, como a biblioteca veio a lhe mostrar. Jeep tinha intimidade com Nietzsche e Kierkegaard. Era um sociólogo refinado e um linguista em potencial. É autor de uma curiosa tese sobre o sotaque pa­­ra­­naense: desenvolvemos um dia essa fala de "ês" tão marcados para não deixar dúvidas aos tropeiros hispânicos de que estavam em terras brasileiras.

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Não foi bem esse o morto pelo qual Teca chorou. Sentiria falta do sujeito debochado, que dizia à mulher: "Stella, precisamos ar­­rumar um complexo para essas meninas. Estão muito exibidas". Se dava na telha, declamava poemas no corredor. Só andava de ônibus, nos quais subia a bordo de ternos último tipo. Tinha o charme de um Samuel Wainer. Para espanto, seu nome ficou rodeado em silêncio depois das exéquias no Cemitério Munici­­pal. Dá para entender.

Erichsen vinha de uma família de ervateiros empobrecidos dos Campos Gerais, mas tinha uma antepassada ilustre – a educadora Emília Erichsen, esposa do navegador dinamarquês Conrad Erichsen. Foi, com folga, uma das mulheres mais cultas do Brasil do século 19, ad­­mirada por dom Pedro II. Car­­regar aquele DNA implicava perpetuar a dama libertária que falava quatro línguas, que estudou com Frederich Froebel, na Alemanha, e fez de cidades co­­mo Castro e Palmeira o laboratório de suas ideias pedagógicas. Foi o que fizeram Jeep e suas irmãs Sílvia Bittencourt e Luiza Dorfmann.

Stella Carmen Barros Lacerda Braga Marcondes de Sá – a mu­­lher que ele amou – vinha de uma tradicional linhagem da Lapa, da qual saiu o governador Ney Braga. Embora estando Erichsen muito mais à esquerda, os cunhados nunca saíram no braço. Mas havia um fio desencapado. Daí não se falar de política à mesa ou da porta para fora. Nem sempre funcionava. Certa feita, o muro da casa onde vi­­viam, na Prudente de Morais, amanheceu pichado: "Abaixo o Erichsen. Ele quer acabar com nossos planos". Passou-se uma demão e nenhum pio. "Quando chovia, a cal escorria e a frase de novo", lembra Teca. Como o Jeep – ri.

Aos 66 anos, e com um proble­­ma grave de visão, a artista plástica decidiu tirar o pai do esquecimento. Ela se esforça para decifrar os escritos da biblioteca: neles se esconde o descendente de Emília que se tornou o antagonista íntimo do maior mito da política paranaense. A oposição lhe descia a goela já no café da manhã. Calava-se por amor a Stella e curava-se nas marginálias. Hoje, a letra miúda escapa à filha Teca. Quando consegue ver as frases escritas numa elegante caneta Park 21, urra, ganha de volta seus olhos para o mundo.

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