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José Carlos Fernandes

Poty está vivo no Cartório do Cajuru

 | Foto: Jonathan Campos / Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Jonathan Campos / Arte: Felipe Lima)

É provável que o Cartório do Cajuru seja o único no país a funcionar como espaço cultural. Não se tem notícia de outro: mais de 30 obras de Poty Lazzarotto ficam ex­­postas nas paredes. Não é tu­­do. Quem chega é recebido por seu Silvino, um flanelinha que traja terno e cartola. Um luxo – seguido de aconchego. Como foi sede da família do artista e de seu dono – o cartorário João Lazza­­rotto, 78 anos –, o estabelecimen­­to guarda um jeitão de casa. Não raro a cachorra Pepita trança as pernas da freguesia, na maior. E até pouco tempo, creiam, João­­zinho, como é chamado, criava galinhas no estacionamento.

Mas o melhor está por vir – no quintal. Anexo ao salão bege e protocolar em que as certidões negativas são despachadas está o barracão de madeira on­­de Poty – com folga um dos mais importantes ilustradores brasileiros de todos os tempos – foi descoberto no início da década de 1940, ainda piá.

É o que há. Acanhado – tem algo como 3 metros de largura por 6 de fundura – e sem atrativos arquitetônicos, o barracão não passava de um puxadinho da velha Curitiba. Servia de abrigo para a vaca dos Lazzarotto. Pa­­ra piorar, ficava às margens do "Desvio 108", nome dado a uma das rotas da RFFSA, na antiga Avenida Capanema, hoje Affon­­so Camargo. Quando o trem passava, arre, tremia o chão de tábuas onde Poty menino pisava.

Nada que assustasse o ferroviário Isaac Lazzarotto. Por volta de 1937, ele e a mulher – Júlia Tor­­tato – passaram a servir ali radicci, polenta brustolada e um risoto que hoje, sei não, levaria Santa Felicidade à bancarrota. Tudo sem fricotes, mas com rigores que faziam marchar miudinho a turma do Exército, público-alvo da cantina.

O jantar era servido pontualmente às 19 horas, para não mais de 40 bocas, sem choro nem vela. Fosse governador, chefe da re­­par­­tição ou cantor de rádio, tanto fazia – não avisou a vinda, que chupasse o dedo no Desvio. Pois é, ao descobrir o tempero da Júlia e a conversa de Isaac, os eleitos e os famoso deram um golpe de estado e ocuparam as mesas dos fardados, que aliviavam ali o peso da caserna. Pobres.

A onda de jantar nos Lazza­­rotto durou nada menos do que 30 anos, tempo em que o "vagão do armistício", apelido dado nu­­ma alusão à sua semelhança com um contêiner de guerra, abrigou conchavos entre autoridades, tramoias do futebol e pa­­lhinhas de astros como Sílvio Caldas, Francisco Alves ou as ir­­mãs Ba­­tis­­ta, de passagem para cantar nas rádios Clube, Marumby ou Guairacá. De quebra, a clientela seleta garantiu o encontro de Poty com seu mecenas, o inter­­ven­­tor Manoel Ribas.

Na década de 60, com a cidade mais crescidinha, não deu outra, baixaram-se as portas da cantina. Não fosse Joãozinho, a meia-água teria virado lenha numa noite fria de agosto. Desde aquela época, o cartorário cuida do bar­­racão como se fosse o Paço Mu­­nicipal. A pintura está impecável, há flores nos canteiros, cortinas de chita nas janelas. No teto abaulado se pode ver os afrescos que Poty deixou na sua Capela Sistina suburbana.

"Tá vendo essa mulher com uma cesta de flores? É nossa avô Mônica. Era francesa e cultivava copos de leite nesse quintal", informa o homem, dedo ao alto. Ele é de pouca fala, como o ir­­mão, mas dentro do vagão, tagarela. Não passa mês sem que um grupo de escolares suba o degrau­­zinho, levante a tramela e se sente na mesa de tábua para ouvi-lo contar a saga de um grande artista criado na linha do trem.

OK. Falta o risoto de Júlia e Vi­­cente Celestino a cantar "O Ébrio", como presenciou João nos tempos de menino. Mas dá-se um jeito. O veterano serve refri com bobagens para a criançada, mostra um vídeo sobre o mano e deixa o resto por conta da imaginação, essa louca que, graças, ainda ronda aquelas plagas do Cajuru.

Em tempo. A próxima do Joãozinho é abrir um "espaço Poty" ao lado do serviço. Seria perfeito: os Lazzarottos estão no "Desvio 108" desde 1895 – 115 anos. Fizeram de um risoto uma página curitibana e revelaram um mestre que é a nossa cara. Eu nem lamento que pouca gente se lembra disso ao passar embaixo do "Viaduto da Anaconda", perto da Rodoviária, onde estão o cartório e o vagão. A depender dos colóquios com a gurizada, essa história não dorme tão cedo. Quanto aos que dela fazem pouco caso, nossas sinceras vaias.

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