| Foto: Foto: Jonathan Campos Arte: Felipe Lima

Em menina, na década de 70, a moradora do Capão Raso Carmem do Rocio Costa se via cantarolando feito doida as canções de Márcio Greyck – autor de arranca peitos como Amar não é pecado. Pois Greyck mudou a vida da guria... Ela se tornou uma romântica inconsolável, uma heroína dos folhetins de Gloria Magadan, uma avoada da porta do colégio.Aos 18 anos, apaixonada da primeira à última acne, desafiou as oposições de sua mãe a um romance. Não ficou só na ameaça: orientada por uma amiga já iniciada, entregou-se "ao primeiro que apareceu". Depois soltou a bomba: "Pronto mãe. Agora sou uma prostituta". Na houve na vizinhança quem não soubesse. Era "a perdida".

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Mas como que por encanto, não se disse palavra – Carmem podia ir à venda e ao Colégio Francisco de Azevedo Macedo, onde estudava. Diante dela, nenhum pio. Saía para seu trottoir diário com a naturalidade de quem ia à Pracinha do Novo Mundo comprar jujubas.

Ouvindo-a contar – sem pudores – vê-se que sua história dava um livro, o que ela já está se ocupando de escrever. Teve amores bandidos, um casamento dos infernos, dois filhos, aos quais se dedicou com as prendas das "mulheres honestas". Nada que lhe redimisse: tempos depois, experimentou a garoa fria da capital e a lua na sarjeta. Márcio Greyck, que bobagem. "Eu não tinha onde dormir", conta, sobre o capítulo que começou ali. A dizer.

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Carmem se define como "enxerida" – curte a vida dos outros como se fosse um tobogã. As prostitutas que trabalhavam nas imediações da Riachuelo nunca levaram a mal. Foi para ela que apontaram quando o professor e ativista Toni Reis – do Grupo Dignidade – deu de passar por aquelas ruas de paralelepípedos alertando sobre a aids e o uso de preservativos. Pois que se visse com a Carmem – o que dissesse seria lei.

Em pouco tempo nascia o Grupo Liberdade, ONG devotada às prostitutas, tendo Toni Reis como padrinho. Era 1994. As garotas se mostraram do barulho, como nos Bataclãs do Jorge Amado. Uma de suas passeatas é antológica: foram todas de máscara ao Centro Cívico, com exceção de uma – desde os tempos do Capão Raso ela era assim. E são de igreja, creiam: todas as terças-feiras deixam suas praças para participar de um culto no templo Abba, ali no Centro, em companhia de toda sorte de gente que anda pelas beiras.

Não lembro o autor da frase, mas recordo ter ouvido que Carmem e seu exército de Brancaleone – mulheres pobres do baixo meretrício – fizeram mais pela prevenção do HIV do que muitos órgãos de saúde. Não duvidem.

As pessoas adoram especular junto a elas histórias passadas em hoteizinhos merrecas da Tobias de Macedo. Mas a ativista – qual um pesquisador do IBGE – prefere tratar de estatísticas. É uma referência no setor. "Somos uma categoria de prestadoras de serviços", avisa, ao debulhar os dados levantados em mais de um estudo de campo da ONG.

Pelas contas, seriam 30 mil prostitutas atuando em Curitiba – 5 mil filiadas ao Liberdade –, distribuídas em 3.980 pontos, onde estão sujeitas a marmanjos que propõem pagar para transar sem preservativo. É onde entra o Liberdade. De salto alto e bolsinha em riste, as agentes se ocupam de inibir essa barganha em abordagens noite adentro.

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Dá resultado. Em 2010, pesquisa feita em dez capitais mostrou que apenas 4 das 250 prostitutas curitibanas testadas tinham se contaminado pelo HIV. O fato foi comemorado no pequeno espaço da ONG, na Rua São Francisco, como se fosse Dia de Santa Madalena. É o point. Ali, passam pelo menos 30 prostitutas/dia para comer um pastelzinho e chorar pitangas com Carmem – há quem lhe peça um advogado. E quem file R$ 0,50 para completar o ônibus.

Um dos princípios da organização é não botar regra para ninguém. Tem quem goste do que faz. Tem quem queira "sair da vida". Aconteceu com Carmem. Quando tinha 36 anos, ela entrou no curso de Enfermagem na PUCPR, formou-se e hoje, aos 53, é parceira do Ministério da Saúde. Bom papo – me conta que "uma das meninas se formou em Direito dia desses – veja só?" Depois, solta um palavrão e fala que adora levar os netos no parque. Gargalhamos. Me senti em casa.