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José Carlos Fernandes

Ao negro desconhecido

 | Foto: Felipe Rosa Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Felipe Rosa Arte: Felipe Lima)

Fiquei encasquetado com o que vi, meses atrás, em visita à Sociedade Ypi­­ranga Futebol Clube – octogenária agremiação étnico-esportiva da Água Verde. Trata-se de um barracão do tempo das nonnas, frequentado por uns poucos sócios quase tão antigos quanto o emblema da fachada, datado de 1930. Fica na Rua Silveira Neto, na altura em que a Rua Ângelo Sampaio desmaia. E tem poder de despertar saudades até do que a gente nem viveu. Foram-se o rio, a arquitetura de madeira, a cerveja feita em casa e mais da metade dos doidos varridos, em fartura por lá. Ficou a Ypiranga, até quando.

Dentro da sociedade, em meio às paredes forradas de fotografias dos Gabardo – família que deu origem ao time – há o retrato de um negro distinto, em terno e gravata, dividindo espaço com a galeria de presidentes brancos como lençóis de alvaiade. Deve ser foto tirada há 70 anos. Pedi quem era o homem. Pois que perguntasse de algum outro: descobriria até quantos gols fez no glorioso YFC. Mas daquele, nem em sonho. Não por mal. Os ipiranguistas até especularam a um e outro, aqui e ali e nada.

Pois descobrir a identidade do negro aristocrata do Ypiranga virou uma obsessão. A presença dessa imagem na sede do clube, em destaque entre altivos italianos e seu narigões, deve guardar alguma história danada de boa sobre alguém que furou o cerco das periferias numa época em que até casamento de gente do Portão com da Santa Cândida acabava na polícia.

Quanto mais pergunto sobre o assunto, mais me vejo em tranças. Já passa da hora de especular a Curitiba pixainha. Tenho pistas um bocado. Dizem respeito aos negros que ascenderam à classe média em tempos em que isso era tão difícil quanto sair de casa sem precisar de galochas. O guapo desconhecido, aposto, é um desses poucos. E não é que parece muito à vontade em roupa de missa. Seria bancário? Teria casado com uma Stofella?

Em conversa à toa com o historiador Fabiano Stoiev, um dos autores do projeto Pelos Trilhos, confirmei o que era de se suspeitar: muitos negros devem ter saído das rebarbas de Curitiba via serviço público, mais precisamente trabalhando na Rede Viação Paraná Santa Catarina (RVPSC) e Rede Ferroviária Federal (RFFSA), onde saltavam de "turmeiros" e "guarda-freios" para os escritórios. Do macacão ao terno, mudavam também de bairro, onde lhes mudavam de cor, faceta da nossa sofisticada democracia racial.

No Novo Mundo, onde nasci, havia uma família de negros ao lado da nossa casa. Foram eles os primeiros da rua a ter uma televisão, o que aumentou nossa proximidade: nos tornamos televizinhos. Mas era na Água Verde que assistia, atrás do balcão da loja do meu pai, a cenas que não sabia o que significavam, mas que contava as horas para vê-las se repetir.

Nos idos de 1970, a "Ban­quinha do Português", como a chamavam, se via visitada pelas famílias dos negros Zaca e Clóvis Nascimento. Bastava chegarem para que a temperatura ambiente subisse 10 graus centígrados. Calorosos – e que conversa sortida aquela. Ria-se da última da política ou da vida boba. Depois, vendíamos Manchete e Cruzeiro. E quando os fregueses se iam, a mãe comentava a elegância da "Terezinha do seu Clóvis". Não era a única.

Até hoje não há homem mais alinhado na Baixada Atleticana do que o negro Darci Rosa. Vê-lo indo à padaria de paletó, boné e Ray-Ban é uma prova de que ainda sobra alguma delicadeza por aí. Era da casa do seu Rosa que víamos as filhas saindo para o carnaval pela Mocidade Azul. O tal do carnaval que não existia numa Curitiba que não tinha negros. Foi numa dessas confusões, vai ver, que se perdeu a identidade do negro do Ypiranga. Mas um dia, quem sabe.

P.S. domingo é Dia de Zumbi dos Palmares. Não esqueçam.

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